terça-feira, 28 de agosto de 2018

Da eternidade dos dedos



(Para M. com todo o meu amor)




devia ter-te dito que
os meus lábios conhecem a tua pele de outro Tempo
e que lhe dizem coisas enquanto a toco.



que se colar os teus dedos na minha boca
e a souber arrastar delicadamente pelo teu braço,
o meu cheiro é o teu,
o teu o meu.



que se tombar no teu colo,
sei que o teu corpo resgataria os meus ossos da morte
com a luz que iria buscar
- sem medo -
à água do deserto do corpo dos vivos.


devia ter-te dito que o formato do teu corpo,
a linha dos teus ombros tocados pelo sol,
são meus desde o momento da Criação.


(eu a saber que o meu corpo precisa tanto de ti.
eu a saber que queria tanto ter-te.)




image: Eric Lacombe

CAPAZES - "Mamas com farinha e a bela broa de Avintes"



O meu texto na Capazes a ler aqui




segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Porque ontem foi dia 5






Vou deixar que me ponhas os ossos partidos no sítio; vou deixar que apanhes o que sobra do meu corpo do chão.



Vou deixar que cuides de mim, que me cosas as feridas, que unas a minha pele com agrafos: vou deixar que me agrafes  os cortes profundos com os maiores ou me dês pontos interiores; e não vou chorar.



Vou deixar que me deites na tua cama e me limpes as marcas sem estar atenta ao perigo

( na tua casa o perigo é um homem alto que fica à porta: tu nunca deixas o perigo tocar-me)



Vou virar-me de barriga para baixo para veres o estrago nas minhas costelas enquanto sei que abanas a cabeça e lamentas a minha dor. 




Vou deixar que com uma tesoura me cortes a roupa para me tratar nua,  e vou ficar de olhos fechados em repouso,  porque em ti eu sempre pude sossegar. 




Vou deixar que me ponhas as ligaduras nos pulsos deslocados, nas costas massacradas, a pomada nas nódoas negras das pernas e nas ancas  em círculos de massagem com as pontas dos teus dedos - sempre - tão amorosos e salvificos. 



Vou deixar que arrumes o quarto de hóspedes da tua casa para mim, que me abras as malas e  me ponhas a roupa no armário para não se amachucar. 



Vou aceitar que cozinhes  e me leves comida à boca. 

Vou aceitar não fazer esforços até que os meus dedos escrevam

(eu sei que gostas de ouvir a velocidade dos meus dedos nas teclas e a luz do meu quarto acesa as 3 da manhã)

Sei que sorris quando eu escrevo. 

Vou aceitar ficar.

Porque tu és guarda.

Porque és abrigo.

quinta-feira, 2 de agosto de 2018

Nenhuma pedra morre






Para J. que é um salmão







A mão dele tem dois dedos mortos por quem me apaixonei.



Dois dedos  sem vida entre os outros que pulsam e ele a saber aceitá-los e a tê-los como parte de si, como quem tem filhos diferentes sem nada para lhes dar:  ele a continuar a amá-los ali.

(os dedos dele são troncos de árvores mortas mas ele não sabe)


De facto, aquela mão, faz-me amá-lo mais.


Ele disse-me que era um homem de dedos mortos e eu não me importei porque a nossa guerra é outra: a do entendimento.

A pior de todas. A feroz.



Ele também é um salmão: um salmão com uma mão.

É um salmão com uma mão de dedos mortos e pés e uma cabeça que pensa por ela própria e se movimenta por aquilo em que acredita; eu gosto das guelras dele. Gosto de o ver respirar.


Não sei se um dia destes o rio dele o leva.

 Se eu o perder de vista, vou sentar-me aqui a vê-lo ir, acreditando  que nenhum pescador o apanhe e que ele continue, rio acima, de escamas brilhantes, e possa encontrar o que procura.







Do regresso

  porque eu já não sei escrever. -as minhas unhas, os meus dedos, a minha boca já não sabem escrever.   já não sei escrever. -os meus olhos,...