sábado, 20 de fevereiro de 2021

I walk, I cry, but i won´t complain

 


20 de janeiro de 1893


Querida avó, 


a minha terapia és tu. Quando tudo é vazio, profundo e buraco negro. Quando tudo é medo. 
Há tanto tempo que não te escrevia mas tenho o coração logo depois da pele e consigo senti-lo como se ele estivesse a preparar-se para me rasgar e sair.

 Sabes avó, a última vez que olhei para mim não tinha nem mãos, nem pernas nem ombros.
Avó, eu tocava-me e eu não era eu porque eu não tinha nada, avó, não tinha corpo refletido.

A última vez que me vi ao espelho apalpava a minha cara e não tinha curva do rosto, sabes avó, não tinha bochechas, lábios: não tinha nem nariz nem olhos nem boca, apalpava-me desesperada na cara e não havia sobrancelhas, nariz. Eu tocava-me e nada, nada, avó.

Avó, a maturidade e a sabedoria do tempo afinal ainda não são suficientes para me ter feito como tu, ou como a bisa, que um dia procurou um médico pelo seu próprio pé quase a morrer.

Como é que se faz, avó, para deixar de ser isto por dentro quando tudo é fragilidade? Não sei.
Pensei que o poder de saber exatamente quem sou e  para onde vou me dessem esse lugar no mundo, mas não.
E pensei que o amor me salvasse mas ele parece não conseguir fazer isso por mim. 
Talvez não lhe caiba esse inside job. Talvez eu sempre tentasse que alguém em salvasse e me desse o que eu parecia não conseguir chegar aqui de dentro.
Aqui de dentro.

Não sei, avó.
Pensava que sabia mais disto do que sei.


Voltei a escrever.
Reparei agora.







Do regresso

  porque eu já não sei escrever. -as minhas unhas, os meus dedos, a minha boca já não sabem escrever.   já não sei escrever. -os meus olhos,...