sábado, 17 de maio de 2014

Lanugo (parte II)






Eu sentada nua do lado de fora da banheira com a pele à espera da água certa,
 a torneira a correr
(há sempre a água certa: a água que não queima, a água que não dói)
 a água morna, média, boa de quente
- um dia achei que gostavas de mim a sério


a mão dentro a provar a água: a água a dizer-me que ainda não estava pronta para eu entrar
- esperava que gostasses de mim  sem que elas  me aparecessem  no tecto do quarto de propósito,   o flash que cega o acordar
[não somos nós dentro das fotografias, pois não?]

quando a madrugada me acorda os sonhos
e os meus olhos abrem juntos como se estivesse viva



ainda morna demais,
 fria demais, quente de menos: a água
- gostar a sério: não como os cães gostam das cadelas,
 não como os bichos: gostar a sério.

a mão a experimentar a água, 
depois o braço todo até ao cotovelo e a pele sem reclamar 
(só para ver se podia por o corpo todo a seguir)
- a sério,
a sério: não como  animais

e depois tu a quereres entrar à força
a água que ainda não estava na temperatura certa
as paredes da casa de banho lívidas e quietas como gente que vê
- o pé dentro,
a primeira perna, eu já na banheira

a bateres,
a porta quase a ceder no tranco
a água finalmente pronta: o banho
-  não, não como os ratos,
 não como os coelhos, apenas como gente.






Entrevista - Alentejo Calling - Rádio Renascença

  ler aqui:  https://rr.sapo.pt/noticia/pais/2024/09/24/migrantes-ajudam-a-construir-um-alentejo-absolutamente-novo-e-povoado/394895/