quinta-feira, 24 de maio de 2018

Do nada que é tudo






Eu era mais sozinha antes de ti: não numa solidão profunda, mas numa solidão escolhida e amada.

O tempo ensinou-me o que não quero mais e na prática tu não tinhas nada para me dar a não ser um futuro árido sem flores.

Eu preciso de flores, sabes? De flores. De água. De jardins. De ser
(eu preciso tanto de ser)




Minto. Tu tinhas coisas para me dar.
Tu tinhas o teu corpo e os teus olhos. Tinhas os teus olhos. E tinhas a maciez da tua barba que servia de casa à minha pele.
A tua ausência hoje é um motor de uma bomba de um poço que me arranca a escrita: comigo foi sempre assim. É ela e não eu.
Quando estou vazia ela entra com as palavras atrás como a maioral de um gang.

Há dias em que as palavras chegam sóbrias, mas tantas vezes chegam embriagadas agarradas às paredes e a rir, tantas vezes descompostas, tantas vezes como vizinhas do lado que eu nunca convidei a entrar 


(eu nunca quis escrever mas elas)



 estatelam-se no sofá, esfregam-se pelas paredes do meu quarto, empurram-me para cima da cama e mandam em mim.

De facto, as palavras definem o que eu sinto porque elas são eu a falar de mim cá fora como se eu saísse para me dizer– tal como agora enquanto falo de ti.

Hoje elas ; não tu, tu és elas: elas fazem a gramática cair de morta quando as explico mas não querem saber de nada, não se preocupam com a retidão.


Nós devíamos podido ter sido eternos. Eu gostava de ter sido eterna contigo mas talvez a eternidade seja apenas dos escolhidos.



Espero que um dia leias isto e saibas o que eu quis de ti.
Espero que elas saibam dizer-te isso por mim.

terça-feira, 22 de maio de 2018

Do dia do nunca mais









Sou eu própria a fazer isto comigo, sabes?
Eu sei o que acontece a seguir se me faltarem as forças agora.

As cordas à volta dos pulsos e da boca fui eu quem as posicionei no meu corpo 

sozinha,

 enquanto os meus dedos da mão esquerda me caiam ao chão de  tanta pena que tiveram de mim,

eles a caírem inteiros, 

desde o osso que se desossou para se deixar sucumbir morto ao chão, à laia de suicídio de dedo
(eu a precisar tanto que os meus dedos me ajudassem a dar o nó na boca porque ela quer falar-te e dizer-te coisas bonitas; e eu sem puder, eu a tapar-me)

por mim, por não pudermos ser

Os dedos da outra mão e os dentes que me faltam foi por fazer isto comigo uma vez em que houve isto também.

Por fazer aquilo do impossível: desamar,
para nunca mais ter de passar perto da casa onde mora a dor.

terça-feira, 8 de maio de 2018

Aniversário em flor


(Sim, sei que é amanhã. Mas amanhã para mim é já hoje)






Fazes anos hoje. Não te vou telefonar, nem mandar postais: quero que penses que me esqueci de ti.

Mas eu nunca me vou esquecer da tua vida, ainda que a tua vida tenha deixado de ser parte da minha: nunca serás esquecido, só omitido da minha boca e do resto do meu corpo.

Gostava de te dar um poema mas tu nunca foste da Poesia, ainda que a Poesia sempre fosse de ti.
A Poesia costumava viver em ti como um dedo ou uma orelha vive num corpo.
Cheguei a tirar-te Poesia da cara com o pano da cozinha, um dia quando vinhas do trabalho.

(Gostava tanto de te dar um poema mas os meus dedos foram queimados e já não me sobram mais).



Queria que fosses feliz, sabes? Ainda como nas cartas de amor que te escrevia, como sublinhava em todos os teus postais de aniversário.

Obrigada pelo que me pudeste dar, no tempo nosso. Há sempre um tempo.
Se te ligo é porque tenho saudades do nosso e às vezes queria que ele voltasse para me salvar, mas depois acordo e sei que eu nunca quis ser salva de nada: só amada, de tudo.

E isto podia ser um poema, mas é uma declaração de guerra.

Sê sempre feliz.
Mesmo que a tua felicidade me esqueça.

E eu, com sorte, um dia a si.

Do regresso

  porque eu já não sei escrever. -as minhas unhas, os meus dedos, a minha boca já não sabem escrever.   já não sei escrever. -os meus olhos,...