quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Brincávamos a cair nos braços um do outro



brincávamos a cair nos
braços um do outro, como faziam
as actrizes nos filmes com o marlon
brando, e depois suspirávamos e ríamos
sem saber que habituávamos o coração à
dor.
queríamos o amor um pelo outro sem hesitações, como se a desgraça nos servisse bem e, a ver filmes, achávamos que o peito era todo em movimento e não
sabíamos que a vida podia parar um
dia.
eu ainda te disse que me doíam os
braços e que, mesmo sendo o rapaz, o
cansaço chegava e instalava-se no meu
poço de medo.
tu rias e caías uma e outra
vez à espera de acreditares apenas no que
fosse mais imediato, quando os filmes acabavam, quando percebíamos que o mundo era feito de distância e tanto tempo vazio, tu ficavas muito feminina e abandonada e eu sofria mais ainda com isso.
estavas tão diferente de mim como se já tivesses partido e eu fosse apenas um local esquecido sem significado maior no teu caminho.
tu dizias que se morrêssemos juntos
entraríamos juntos no paraíso e querias
culpar-me por ser triste de outro modo, um
modo mais perene, lento, covarde.
Eu amava-te e julgava bem que amar era
afeiçoar o corpo ao perigo.
caía eu nos teus braços, fazias um
bigode no teu rosto como se fosses o
marlon brando.
eu, que te descobria como se descobrem fantasias no inferno, não queria ser beijado pelo marlon brando e entrava numa combustão modesta que, às batidas do meu coração, iluminava o meu rosto como lâmpada falhando.
a minha mãe dizia-me, valter tem cuidado, não brinques assim, vais partir uma perna, vais partir a cabeça, vais partir o coração. e estava certa, foi tudo verdade.

VHM

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

No dia em que tu nasceste







Tens o mundo inteiro no teu peito,
entre os teus pêlos há casas com luz,
gente na rua, rios e cidades inteiras que não se mexem: falam baixo,
existem tão-só sepultadas na mansidão.



Tens o mundo inteiro no teu peito
de carne humana que degela quem quer que seja que nele queiras acolher.



E depois tens os teus olhos. Os teus olhos.
- ainda não falei dos teus olhos


Quieto, o teu olhar sem saber,
faz numa varanda verde de Lisboa,
fruta por milagre crescer.





terça-feira, 20 de setembro de 2016

Carta Aberta a Gregório Duvivier





Caro Gregório Duvivier,

Há coisas que não podemos deixar incólumes. A sua última crónica fez-me ficar três minutos de olhos colados ao iphone enquanto a lia e relia – ao mesmo tempo que apanhava o metro da linha azul em direcção ao Marquês de Pombal (uma maravilhosa estação de metropolitano em Lisboa, onde cem corpos passam por nós a cada dois minutos) e por pouco saí na estação certa. Fiquei a pensar na sua crónica o dia todo, confesso-lhe.
Tinha de lhe escrever porque apostava a minha mão direita em como aquele texto dirigido a Clarice não foi um golpe básico de marketing para o vosso novo filme: aquele texto cheira à honestidade que o Amor traz, de uma ponta à outra, e deixa qualquer coração humano a precisar de ser desfibrilhado em tempo recorde.
Ri-me muito consigo. Com a “Porta dos Fundos” e com o “Vai que cola” (filme incluído). Quando li o “Desculpe o incómodopreciso falar de Clarice” considerei-o um homem emocionalmente capaz (há tantos deficientes emocionais por aí) e, sobretudo, considerei-o um homem profundamente bonito. Bonito a sério.
Os haters espalharam rapidamente as suas explanações habituais pelas redes sociais contra o texto. Entenda isso como aquilo a que em Portugal chamamos de “ressabianço de uma cambada de mal-amados”: porque o Amor de verdade é um enorme privilégio que não é concedido a todos os terrestres – só a alguns de nós.
Não sei o que temos de fazer para obter este desígnio ou como é que somos seleccionados para o poder sentir, mas sei que quando usamos o mesmo pijama dessa pessoa  para dormir, quando deixamos mensagens escritas com baton no espelho da casa de banho, quando escrevemos cartas de amor diárias, quando comemos do mesmo prato enquanto vemos a nova temporada do “House of Cards” de rajada, quando lhe lambemos a bochecha no meio da rua ou montamos a árvore de Natal juntos a ouvir músicas melosas: Amamos. E saber amar alguém será sempre um privilégio.
Fico com pena que não tenha resultado entre vocês: que a esta hora não estejam juntos com quatro filhos, no mínimo.
O verso que Vinícius escreveu sobre o Amor “que seja eterno enquanto dure” deveria ser emendado para “que seja eterno e dure para sempre”.
Não tive a mesma sorte que o Gregório teve: o meu amor morreu no mar da Costa Rica enquanto fazia mergulho. Não sobrou nada porque a água levou tudo.
Não chorei abraçada a ele, chorei sozinha.
Mas não faz mal. Porque aqui também já não falta nada.
Um abraço,
Inês Leitão




segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Das coisas da terra





Sabemos que somos morte, cal e dor, como sabemos que a profundidade do nosso corpo não é a profundidade estática da nossa existência quieta, plácida, involuntária
- eu nunca pedi que um dia tu viesses e te sentasses com o teu corpo para me ouvires falar por dentro,
 lá dentro onde tudo o que é vida acontece 



tão involuntária
- mas tu vieste e disseste: mundo



 E eu ouvi-te.
Não era só eu quem falava: quieta,
plácida,
 involuntária
- tu lembras-me os búzios que as senhoras da Ericeira vendiam perto da marisqueira onde almoçávamos: elas a jurarem que era só preciso eu encostar a cabeça e ouvir



Quieta, plácida
- eu a encostar o ouvido  para ouvir o mar guardado lá dentro:
eu a acreditar




Involuntária
-  de como somos tão parecidos nas nossas corcundas ou no nosso corpo esbelto e direito que trazemos à laia de lembrança de vida




 Quieta, plácida, invo-lun-tá-ria
- há tanto tempo que sou sozinha que acho que não sei mais ser de outra forma




Que sabe antever os passos da morte e da vida: porque um dia houve em que vida foi concebida e maltratada,
um dia houve em que a esperança se calou sentada num banco de madeira que girava num lugar onde a luz nos dava na cara
- não faz mal que fiques: não faz mal que vás




Porque todo o sabor fica na boca. Não se apaga.
 Fica na boca e na cabeça. Nas duas,  às vezes juntas.
Nas duas, às vezes, como se fossem só uma.






.

Do regresso

  porque eu já não sei escrever. -as minhas unhas, os meus dedos, a minha boca já não sabem escrever.   já não sei escrever. -os meus olhos,...