terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Cartas a R.

Lourenço Marques, 5 de Janeiro de 1969


Querido R.

As tuas cartas ainda me fazem rir.
Nunca conseguirei aceitar que um corpo seja compreendido como uma oportunidade. Um corpo a dormir comigo nunca foi uma oportunidade: para mim, fenómenos dessa natureza são analisados criteriosamente sob a semelhança de um atropelamento grave.
 Tenho a nítida impressão que todos os meus relacionamentos com homens foram acidentes de viação violentos que me amputaram membros ou – tão estranhamente - me acrescentaram órgãos ao corpo, Tenho mais rins, mais fígados, mais tripas do que qualquer outra pessoa que conheças.
Corpos deitados na minha cama sempre me fizeram sentir mais sozinha: e eu sou sozinha como nunca imaginaste que uma mulher podia ser. Sou envergonhadamente sozinha. Tanto, que me enterneço de compaixão pelos dedos dos meus pés ou pelos pêlos que me crescem a medo, lentos de medo.
Às vezes tenho vontade de pegar em mim ao colo e levar o meu corpo para longe: uma oportunidade nunca comportará o respeito e o amor suficientes para mim e para o meu corpo.

 Eu não tomo bem conta do meu corpo.
No fundo, recuso-me.

Talvez por isso, inteligentemente, a natureza me tenha feito uma mulher estéril: nunca saberia ser mãe, nunca saberia tomar conta de um corpo mais pequeno que o meu. E tenho muito medo do meu coração, esse órgão que tão estranhamente se mantém único, sem duplicação. Tenho medo do meu coração como órgão e como cova. Tomo os medicamentos certos para deixar de ter medo dele, de que um dia pare ou se descontrole num desses tantos atropelamentos que vou tendo
( a dor no corpo continua depois do choque). E sabes porquê, R.? O confronto do corpo com a morte de uma parte do seu coração é o mais duro de todos e requer impreparação.

Assim R.., um outro corpo na minha vida nunca significaria uma oportunidade, seria sempre um acidente, com as consequentes hospitalizações.

Sempre tua,

I.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Em nome do Corpo

 Não
 posso
ex-pli-car
 a
 importância
do
teu
 corpo
sem
te
 con-tar






- o teu corpo é o único lugar do mundo onde ninguém te toca, porque ninguém te sabe aí dentro (...)

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Ode à estação de Entrecampos

Pessoas.
Pessoas que são pessoas, pessoas
que agarram pessoas, pessoas
que pisam pessoas, pessoas
que gritam com pessoas, pessoas
que tocam pessoas, pessoas
que cospem pessoas, pessoas
que cansam pessoas, pessoas
que olham pessoas, pessoas
que desejam pessoas, pessoas
que pensam em pessoas, pessoas
que amam pessoas, pessoas
que têm pessoas, pessoas
que não têm pessoas, pessoas
com ódio de pessoas, pessoas
que sabem ter pessoas, pessoas
que não sabem ter pessoas, pessoas
com raiva de pessoas, pessoas
com raiva de pessoas que têm pessoas, pessoas
sem raiva de pessoas que têm pessoas, pessoas
que dormem em pessoas, pessoas
que acordam pessoas, pessoas
que vomitam pessoas, pessoas
que limpam pessoas, pessoas
com pessoas na barriga, pessoas
sem pessoas na barriga, pessoas
que ajudam pessoas, pessoas
que levam pessoas, pessoas
que esperam pessoas, pessoas
que são pessoas. Pessoas. Pessoas. Pessoas.


sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Chelsea Hotel

Debaixo do meu corpo vive uma mulher.



Debaixo do meu corpo vive uma mulher magra de 35 kilos.

Debaixo do meu corpo encolhe-se entre os meus órgãos uma mulher de pernas pequenas que estreita magreza pelos braços até às mãos.

Debaixo do meu corpo vive uma mulher de meia idade, de olhos grandes e azuis de vazio,
sem sobrancelhas feitas de pêlos ou de desenhos a lápis.

Debaixo do meu corpo vive uma mulher sem seios
(dois altos de pele murcha à laia de figo mastigado)




sem sexo
(apenas uma curva de corpo ausente de pêlo ou fenda)




e sem mundo
ardente do cheiro das coisas
a morrer dentro da sua cabeça.


Debaixo do meu corpo vive uma mulher que não come, não bebe
e é amplamente calva na unidade que é a sua pele.

Debaixo do meu corpo vive uma mulher.
Gosto de chamar-lhe Lídia.





sábado, 3 de dezembro de 2011

O acesso ao meu corpo é feito por palavras

(para a minha tia Maria José com todo o meu amor)



As palavras têm cio. 
As palavras fazem cirúrgias de peito aberto mas não gostam de bisturis. As palavras não competem entre si porque se amam e gostam de se abraçar. As palavras gostam de amálgamas  e as mais abusivas pensam todos os dias em novas formas de violar a sintaxe das frases quando ninguém vê.
As palavras gostam da cabeça de David Mourão-Ferreira e da cabeça de Mia Couto. As palavras gostam da boca de Galeano e têm um amor profundo pela Srª Adília Lopes.
As palavras não atravessam a estrada fora da passadeira e não existe em qualquer parte do mundo uma única palavra preguiçosa.
As palavras gostam de crianças com menos de 5 anos: gostam de ser provadas, experimentadas, comidas docemente como só elas sabem fazer.
As palavras sabem que os acordos ortográficos lhes fazem mal à pele.
As palavras gostam de sonhos e de bocas bonitas com baton. As palavras gostam da palavra baton.
As palavras gostam de imigrantes e de emigrar.
As palavras gostam de moleskines e detestam SMS´s.
As palavras não gostam de erros, da mesma forma como não gostam de vírgulas ou de pontos finais. As palavras detestam abreviaturas e não levam a sério finais de frase. As palavras não gostam de fim ou fins. As palavras acham que os seus plurais são irmãs gémeas com mais uma perna.


As palavras gostam do amor.
As palavras têm vida eterna.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Para a minha mãe



(para a minha mãe, que não gosta daquilo que eu escrevo )


Trocava os meus ossos pelos teus
mandava que me cortassem os músculos da boca
ou todos os dedos das mãos.

Trocava os meus ossos pelos teus
pelo cheiro da tua cama
eu tão pequena quando tu saías
e tudo a cheirar a ti
que eras perfume e mãe.

Trocava os meus ossos pelos teus
para poder ouvir vezes sem conta
o meu nome chamado por ti da janela de casa
(como se eu fosse importante e tu não pudesses perder-me)

Trocava as minhas rótulas pelas tuas
pelos teus castigos e pelo teu amor todo.

Trocava os meus ossos pelos teus
os meus joelhos estirados em sangue
para não ouvir os gemidos da tua dor
(ou os receios da tua morte a falarem alto na minha cabeça).

Trocava os meus ossos pelos teus
ou oferecia-te os meus olhos num prato
arrancados por dedos indicadores
cheios de amor.

Trocava as minhas rótulas pelas tuas
retiradas sem o carinho da anestesia local.


Trocava os meus ossos pelos teus
sem eira
nem beira
nem pé de figueira
para que possam  existir sempre orações bonitas
murmuradas por ti.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Do nó

Explicar que não sai, é um . Um . Não sai. Não desata. Não desafoga. Não permite descanso nem altercação. É um e prende.
Uma coisa com duas pontas que no meio de uma encruzilhada aperta. E aperta com peso. Aperta com peso e com dor. Acho que aperta e pesa ao mesmo tempo porque é demasiado para ser só uma das coisas
- pesa, cansa, dói

Pesa quilos e quilos. De dor. Na zona do peito, no sítio onde dizem que fica o              . Aqui.
No mesmo ponto, no mesmo lugar onde dizem que fica o

- nunca soube se o coração é um ponto ou um lugar

um ponto
ou
um lugar
no
corpo

os dois. Não sei.

Mas um lugar ou ponto a suportar quilos e quilos de . De um que não é pano, que é pedra. É um de pedra cá dentro.

Cá dentro. A arder.


sábado, 19 de novembro de 2011

O meu corpo é a minha companhia

O meu corpo é a minha companhia.

( a partir da obra da pintora Graça Martins)




O meu corpo é a minha companhia
do cheiro dos meus dedos
ao desenho do mundo,
curva silenciosa da minha sobrancelha.


O meu corpo é a minha companhia
das unhas pequenas às coxas empurradas
pela gordura da carne,
antigo refego de barriga.


O meu corpo é a minha companhia
dos pêlos das minhas pernas
até à boca do meu corpo
posicionada pela natureza do meu género entre as pernas
e cosida à nascença pela minha mãe.


O meu corpo é a minha companhia
quando o profano com outros corpos
e ele em silêncio se procura inteiro
na serenidade da frescura da manhã.


O meu corpo é a minha companhia
quando ao repousar o fogo me guia
e dessa certeza nasce poesia.

O meu corpo é a minha companhia
O meu corpo é a minha companhia.
Omeu corpo é a minha companhia.

Pintura de Graça Martins

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Cartas a S.

(carta nº 1, a última)



Afoguei o que restava das nossas memórias num balde água quente. A paciência de um afogamento individual,
quieto
 tranquilo
de memória a memória
(uma a uma,
dor a dor)


até ao alinhamento rigoroso de todos esses pequenos cadáveres retirados mortos do balde,
mortos
molhados
quentes
deitados em fila no chão da cozinha até à solenidade do seu enterro.

E estranhamente.


Tão estranhamente, toda a água que escaldava no balde e me ajudava a cada execução por afogamento, não terá sido suficiente para me queimar as mãos.
Não vejo queimaduras. Não restam marcas.




No fundo, é como se nunca tivesse acontecido.





sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Cartas a S.

(carta nº4)

É como num funeral pequeno. Um funeral intimista com uma pessoa
(viva)


vestida de preto e de margaridas frescas na mão.

E depois um caixão e uma morte pequena dentro dele
(são tantas as nossas mortes)

uma morte pequena
 deitada,
limpa,
vestida, 
desinfectada,
autopsiada, 
legalizada
e fria.

Esta morte faz questão da  presença da pessoa viva. Faz questão dessas mãos juntas,
do vestido preto
das margaridas húmidas nas pétalas e de um corpo vivo,
sereno,
plácido,
que lhe traga a serenidade que procura dentro do seu caixão envernizado.

Esta morte fez questão de todo o ritual, como uma mulher que aborta e quer para o seu nado-morto tudo o que o mundo lhe pode dar:
como se um dia tivesse vivido e amado.




E o luto foge-nos pelas pernas, no espaço que vai da campa à porta de casa.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Cartas a S.

(carta nº1946)

Há uma liberdade na escrita da qual nunca te falei. É um composto. Como se num frasco, o mundo inteiro repousasse.



Mas não vamos falar disso hoje.



O T. hoje faz anos. Ias gostar de nos ver. Vamos ter uma festa, balões, bolos, cores, miúdos da idade dele a correr. Ele não sabe. Pensa que é só na escola.
Vamos ter fotografias parvas. Como nós no nosso tempo. Quando deitados no escritório, no quarto.

No tempo em que tu tinhas uma asa
(não um braço)
uma asa
tu tinhas uma asa e eu era qualquer coisa que essa asa arrastava para si e chamava de seu.


Ontem.
Falávamos da tua nova pequena família e eu invejei-te. Veio-me da ponta dos dedos. Perdoa-me. Vou cortá-los. Vou cortá-los ao dez porque ando perdida e os meus dedos não sabem reconhecer pessoas, nem mapas, nem casas, nem estradas, nem florestas assassinas ou territórios sagrados.

Os meus dedos nunca perceberam nada.



Imagem: a partir da obra da artista plástica Alexandra Mesquita "Corações com mau feitio"

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Uma sala vermelha e um quadro perfeito






Da confissão
O sentido de voto do meu corpo é agora tutelado por uma entidade externa, um outro corpo  adicionado ao meu.

Da pertença
A tua biblioteca com os olhos postos em mim desde que entrei na tua sala, os teus livros a dizerem entre si que nunca me tinham visto
(quem é aquela?)
a prenderem a respiração ao meu toque como se tu fosses o seu único digno proprietário e eu 
(uma pequena invasora) 
uma pequena invasora que os agarra docemente com as ponta dos dedos
 à laia de carícia; alguém feito de carne, pele, ossos e unhas que lhes abre as folhas para os saber por dentro.

Do Martírio
Explicar ao meu corpo que se podia acalmar e que sobreviveria sem ti se um dia o teu quarto cor de fruta desaparecesse da nossa frente para sempre e os teus olhos nunca tivessem existido
(o medo dos teus olhos a questionarem os meus)

Do sofá preto que fala
Explicar as saudades e a dor no peito. Explicar o verniz ruído na ponta das unhas. Explicar os armários azuis-escuros da tua cozinha. Explicar o teu quadro e aquilo que ele me disse enquanto cozinhavas.  












Da galinha doce no meu prato


A galinha morta no meu prato a dizer-se doce ao lado do arroz: cozinhaste-nos aos três enquanto a minha roupa me vestia.
Porque gostava de te ter dito que Deus anda a tentar abordar-te na tua solidão, que ele existe, que não é a brincar. Gostava de te ter dito que ele deve andar a esgueirar-se por detrás das portas do teu T1 Kafkiano, a olhar-te, quieto e tranquilo, observando-te nos teus dias como quem te espera. Gostava de saber esperar por ti. Gostava de ter-te explicado Deus quando íamos no teu carro e o painel eletrónico marcava 111 km/Hora. 

(111)
(111,  quase uma emergência)
Gostava que gostasses de mim a sério.
 Gostava que sim.


quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Se eu morresse tu choravas?

 (...) mordes as unhas pela minha boca

e de entre os dentes
soltam-se


 pequenas lascas de carvalho,

a árvore favorita dos trovões.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Do sorriso

"(...) a forma como colávamos o corpo
 um ao outro
nas ruas de Lisboa.


E a cidade,
 minúscula,
 à vista dos nossos passos (..)

segunda-feira, 13 de junho de 2011

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Dedicado a Lídia Jorge (e ontem finalmente entregue pessoalmente à escritora)

(*texto também publicado em www.bocadosdecarne.blogspot.com/www.prazeresminusculos.blogspot.com)


Foi no Marquês que Lídia passou por mim: a sua pele hidratada, os seus cabelos cor de trigo espetados no pescoço à laia de espadachins de ferro; o seu casaco, o seu corpo de costas.
Lídia trazia o DN na mão direita.

Lídia Jorge não me disse adeus e seguia tranquila como se a avenida da Liberdade fosse sua, como se o passeio fosse a imensa continuação das suas magras pernas brancas.
Lídia trazia um casaco branco e os meus dedos quiseram tocar-lhe as pontas dos espadachins da cara. No momento em que me viu, Lídia Jorge disse:
- conheço-a?

E uma mulher pequena deixou cair a carteira.


Eu queria tanto tocá-la, Lídia. A sua pele branca a cheirar a jasmim, o seu casaco branco até aos joelhos à laia de dama vicentina que se protege dos outros, o rigor das suas calças pretas, os seus olhos pequenos escondidos atrás dos óculos escuros
(os seus olhos do outro lado da pele)
as minhas mãos a quererem tocar a ponta dos seus olhos cor de lama, Lídia
-eu?


Eu a querer convidá-la para um chá: falaríamos de nós, dos nossos livros, daquilo que pensamos à noite quando nenhum homem entra Lídia, quando nenhum homem nos toca na nossa cama e ficamos só nós: nós como só nós sabemos ser
- Helena de Tróia, Lídia, eu conheço Helena de Tróia


Eu vi-a, eu disse-lhe olá e a Lídia não me reconheceu
- O Forza Leal, Lídia, Moçambique nos anos 60 não pode ser diferente de Moçambique em 2005
(a mesma Avenida Lenine no filme da Margarida)

a Margarida Cardoso a tocar-lhe os ombros na televisão com um casaco que pediu emprestado para a conhecer: eu sozinha no sofá com um vestido preto de seda à espera que a Lídia saísse do ecrã e me abraçasse. A Lídia a dizer
- sim?


E eu a vê-la ir, Lídia, a vê-la ir sem que a Lídia me colocasse a mão na testa, eu sem sentir o seu abraço que cheira a jasmim
(a Lídia não precisa de se aproximar para eu saber àquilo que cheira)
- a senhora não me conhece, desculpe


Eu a pedir desculpa pelo encontrão, Lídia,
a Lídia a abraçar-me, a insistir para pagar o chá, as torradas, os brioches. Nós íntimas, Lídia, a Lídia a falar-me das personagens do seu novo livro, a Lídia a dizer-me que gosta de Redfish e eu a jurar-lhe que tem de vir cá a casa conhecer a minha mãe e o peixe que coze no nosso forno aos sábados
( o tomate a descansar em cima do redfish com as cebolas e os pimentos, como se todos eles naquele forno fossem uma grande família Vitoriana que se reencontra aos sábados)



a Lídia a jurar-me que a minha imaginação é desleal com a realidade, e nós sentadas num afamado hotel da capital a beber chá de maçã vermelha, com toda a gente a ver.


Lídia Jorge atravessou Lisboa a pé, de óculos escuros, como quem sabe para onde vai.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

O Bom Amor

Abordar-te não era fácil
fazer-te gostar de mim não era fácil
ter-te levado ao meu restaurante favorito não foi fácil
mas eu gostava de ti.


ver a chuva cair sem te beijar não foi fácil
arranjar desculpas para passarmos por tua casa não foi fácil
esperar que me quisesses não era fácil
porque eu gostava de ti.

criar intimidade contigo não foi fácil
ouvir o teu corpo responder-me
ou esperar por ti no meu nunca foi fácil
mas eu gostava de ti.


dormir contigo ao telefone e tocar-me não era fácil
criar iglos imaginários em cobertores envelhecidos deixou de ser fácil
aceitar bons Invernos e vivê-los foi um caminho novo
(como o caminho a pé do Marquês a Sete Rios)
mas eu gostava de ti.

acalmar-me naqueles dias não foi fácil
adormecer
continuar
querer
por o meu corpo em privação por ti não foi fácil
porque gostar de ti não foi fácil
e viver sem ti não era fácil
( eu gostava de ti).

receber sms tuas não era fácil
não receber não era fácil
almoçar,
jantar,
viver naqueles dias sem saber se sim não era fácil
(mas eu gostava de ti).

o sol no jardim infantil,
o frio da relva nas costas
as tuas pálpebras na minha boca
e o espaço que ia de mim a ti a ser tão longe como um comboio com pessoas lá dentro
(mas eu gostava de ti).

e depois  a forma como bebias e eras gente
a forma como os copos chegavam até à tua boca sem tu saberes matemática
(2+2+2)
vinho até caires sem te veres cair
a falares sem te veres falar
(3+5+8)
porque tu às vezes não eras tu -e eu
(2+10+20)
gostar de ti era fácil
o telefone sem tocar
ou tocar sem seres tu não era fácil
mas eu gostava de ti.

terça-feira, 22 de março de 2011

Inocência

Devias. Devias ver a minha cara no reflexo do vidro da porta do hospital. Devias ver como as minhas mãos tremiam e como eu queria estar contigo quando os enfermeiros mexiam no teu corpo e te tiravam sangue que parecia vinho.  Devias. Devias dizer-me da tua maca que o fenómeno da escrita é uma canção morta, e eu  olhava para ti com olhos de quem devia. Devias.

A morte do vizinho do 3º b foi o meu único acontecimento emocional em 5 anos. Ponto. Eu a descer as escadas de pantufas para pagar o condomínio e ele. Ele estrangulado na sala. Ponto. O dinheiro na mão. Ponto. Eu, ele, o dinheiro e a minha mão. Ponto. Nenhum de nós a saber o que dizer. Ponto. Ele. Eu. Ponto. Os meus olhos. Os dele. Ponto. Eu a guardar o dinheiro do condominio no bolso. A ir comprar uns sapatos novos. Ponto

Devias. Tu estavas viva e eras bonita a pedir ajuda com os olhos fora da maca que te caminhava. Era a maca que te caminhava: não eras tu a ir nela.
E é que talvez calando, as vozes voltem. E ai, na minha mansidão, saberei escrever sobre o futuro do mundo.
Devias. Devias.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Notificação de óbito

Começou por uma notificação de óbito, avó. Uma notificação de óbito escrita num livro que ando a ler da Marguerite Duras. Não sabes quem é, avó. Não tiveste oportunidade de ir à escola, de ler os franceses, mas não fiques triste porque não faz mal: eu fui à escola por ti e gosto da Srª Duras.
Foi a ler o livro dela que comecei a
-ouço nas têmporas um latejar que aumenta

e imediatamente os meus olhos se fixaram na tua fotografia estática no desktop do meu portátil
- ouço nas têmporas um latejar que



Óbito.
Tu morreste quando as paredes da sala da nossa casa eram verdes escuras, numa tentativa realista da mãe fazer da nossa casa uma casa moderna dos anos 80
- ouço nas têmpora um latejar



eu não estou na tua fotografia mas pertenço ali.


Porque pertenço a ti, às paredes, à mãe. Há uma pele de raposa no sofá. Há um sofá. Queria ter-te conhecido melhor. Queria saber até que ponto é que a beleza de uma mulher surda pode fascinar homens de uma aldeia inteira. Queria saber coisas de ti que a mãe não conta e poder pensar em ti sem que uma das palavras-chave do motor de busca do meu cérebro fosse óbito. Penso em óbito e és tu e a noção que tenho de ti que me invade. Notificação de óbito. Tu. Óbito. Tu.Óbito. Tu. Tu. Tu.

Vou voltar ao livro da Marguerite porque me sinto mais sozinha quando te vejo nessa sala. Não sei por que razão te pus tão perto das minhas mãos. As paredes da sala verde, tu a olhares para a máquina fotográfica como se não soubesses o que ela ia fazer contigo. Notificação de óbito. A nossa casa. Tu a veres a lente sem imaginares que te íamos ter assim para sempre depois de. Da notificação.


“ (…) Tocam. Quem é?- uma assistente social da câmara. O latejar das têmporas continua. Eu devia acabar com este latejar nas têmporas – parar o coração - acalmá-lo - mas nunca se acalmará sozinho, é preciso ajudá-lo. Parar a exorbitância da razão que foge, que abandona a cabeça. Visto o casaco, desço. Lá está a porteira: Bom dia Sr.ª L. Não tinha ar nenhum de especial, hoje. A rua também não. Lá fora, Abril. (…)”


Marguerite Duras, A Dor, Ed. Difel

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Epistemologia da Dor que fica

Da análise da dor apresentada na presença do corpo vitimizado, analisámos que se trata de um tipo de dor acutilante: rasga-se a gengiva do maxilar esquerdo quando a dor instalada se vira de costas dentro do corpo que ocupa.

O dono do corpo, proprietário imobilizado, fica impossibilitado de procurar ajuda para a cura, uma vez que a dor citada se apercebe com rapidez que uma tentativa de equilíbrio se encontra em curso, movimentando-se imediatamente no sentido oposto, rasgando a totalidade da gengiva do maxilar direito do vitimizado
(esta dor compreende que a boca ensanguentada aterroriza e imobiliza a vítima).

Assim, verificámos o seguinte:

i) Este tipo de dor é cirúrgica de morte e revela-se no indivíduo indicando que gosta do poder destruidor que tem, ponderando com exactidão toda a sua conduta.

ii)Como emoção negativa dentro de um corpo, consegue em menos de um segundo fossilizar,
incendiar,
cristalizar,
congelar,
incendiar
ou asfixiar o seu objecto/vítima.


iii)Este tipo de dor gosta da força da sua própria violência, não se compadece com o martírio, não responde a provocações tecidas e exibe um perfil profundamente manipulador.

iiii)O tipo de dor selado em amostra, tem a capacidade de se reinventar em cada vítima
(homem, mulher ou criança com predisposição patológica)
adaptando-se com facilidade a qualquer circunstância.


No âmbito do exposto é fundamental realçar que o tipo de dor em análise, ao sentir-se alimentado e acarinhado pelo corpo vitimizado, actua com inexplicável ternura sobre o mesmo, naquilo que pode ser referenciado como um


curto
acto
de
afecto
.


Imagem: Eric Lacombe

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

da Solidão 7

É amanhã. O constrangimento da conservadora a perguntar
- porquê? porquê?

e eu pequena, tal como na 3ª classe, timidamente a responder à professora.

Não tenho medo hoje porque o tempo passou. Da mesma forma que o nosso também.O nosso tempo passou e acabou e amanhã seremos duas pessoas adultas que se conhecem a dizer adeus. Com a maturidade da idade adulta sem o medo das crianças.

A fresh start, vai fazer-nos bem.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

da Solidão 3

Ao segundo desmembramento já não há necessidade de afogar a solidão num tanque, nem há que temer que alguém tenha assistido à crueldade do afogamento.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

da Solidão 2

É mais um dia na caminhada: ninguém disse que ia ser fácil.
Vestir-me, lavar-me, comer sem ti ou sem aquilo que eu tinha na minha cabeça que íamos ser. Íamos ser muito felizes e ia durar para sempre. Não durou.
Rendo-me ao colo dos que juntam as suas pernas para deixar deitar e rendo-me desoladamente às suas declarações de amor.


P.S- Ando à procura de casa

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

da Solidão

Estou a tentar viver comigo própria: precisava disto.
Precisava desta solidão tremenda, do vazio da casa-de-banho e da cama, do espelho. Precisava disso ou de alguém ao meu lado que fizesse silêncio para me ouvir ao pormenor. Precisava de alguém que me ouvisse de verdade.

Não encontrei o segundo, viro-me para a primeira hipótese como quem recebe uma prima afastada que veio para me ver.
(Esta é daquelas primas que fazem as suas camas mesmo ao lado da nossa)

Do regresso

  porque eu já não sei escrever. -as minhas unhas, os meus dedos, a minha boca já não sabem escrever.   já não sei escrever. -os meus olhos,...