sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Porta 140




Não nos afogámos porque nos deixaram tábuas por perto,
 não morremos porque nunca nos esquecemos de respirar no meio das ondas e
 não deixámos de acreditar na salvação do corpo porque alguém ficou de vir e levar o mar de nós,
- não te vou deixar cair ainda que ele te empurre sem que vejas

[eu a pedir para ver por ti]



Não nos benzemos nem nos proclamámos inocentes porque esquecemos os séculos debaixo do rio
-  eu a saber que o impacto vem e que o teu corpo e tu sempre sucumbirão à queda

[eu com medo]



Não cantamos o hino sem as portas do convento fechadas e a mão no peito,
 não comemos sem dedos nem sem unhas,
nem existimos sem uma pele que nos cubra os ossos do sal 
- o teu corpo que sempre cai. O adversário na fúria: tu não o antecipaste mas eu vi-o




Não: os olhos só serão descosidos com a neblina porque temos mais lábios que os outros corpos todos juntos
- o teu corpo a girar de lado e a reagir à aflição da queda sem desnorte, a tua mão a querer ser apoio, a querer ser pilar, na terra



[só que desta vez, eu a ver]




Não temos medo que nos queimem a pele porque a queimadura pequena e continua só dói:
não marca,
 não mutila,
não deforma,
só dói.
- desta vez congelei-te na queda e salvei-te.

O teu corpo de lado começou o que nunca será acabado e passou a ser um lugar.






segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Do império do mundo






Talvez seja o teu corpo ou talvez o meu. Talvez o cheiro dos teus olhos a olharem e eu sem que a minha boca me obedeça;  porque eu queria dizer noite, queria dizer dia
d-i-a
- eu sem saber dizer 
d
i
a

eu que às vezes olho para as coisas  e não sei falar
(os meus lábios, a minha língua, os maxilares: a minha boca tem um céu lá dentro que eu nunca vi)




a terra debaixo de ti à espera  da queda: sabemos que acontecerá quando tropeçares num adversário que se vai posicionar para te fazer cair; o teu pé, o desenho da perna, o ombro no ar de lado e o teu corpo que voa
( só voas porque tu és homem)

a tua cara na terra: a fechares os olhos para não te veres, a pele, a expressão do embate, o sobrolho contraído a aceitar o corte e logo depois a dor
( a dor, talvez só depois, a dor)
- eu a tentar mexer a boca para te dizer o lugar onde todos os comboios passam



O embate.
Talvez eu, sim, eu por dentro sem saber o que fazer ao teu corpo e a ti quando chegares com ele para me ver.
Eu a saber que vais cair daqui a pouco- e tão desesperadamente
 à espera que saibas voar. 







sábado, 13 de fevereiro de 2016

Dos dedos da mão e da cabeça presa ao corpo




Que os dedos me caiam da mão se eu algum dia voltar a escrever sobre ti. Que os dedos me caiam da mão se eu algum dia voltar a escrever sobre ti. Que os dedos me caiam da mão se eu algum dia voltar a escrever sobre ti. A escrever sobre ti.Que os dedos me caiam da mão se eu algum dia voltar a escrever sobre ti.
Que os dedos me caiam da mão se eu algum dia voltar a escrever sobre ti.Que os dedos me caiam da mão se eu algum dia voltar a escrever sobre ti. Que os dedos me caiam da mão se eu algum dia voltar a escrever sobre ti.Que os dedos me caiam da mão se eu algum dia voltar a escrever sobre ti.Que os dedos me caiam da mão se eu algum dia voltar a escrever sobre ti.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Do mundo e das coisas




Não cabemos na ausência, não sabemos da dor debaixo da cama.
Não sabemos da desordem porque não sabemos das feridas nos pés, nem do cheiro que o medo tem quando o abafamos debaixo da almofada depois de dias e dias a ouvi-lo gemer ao ouvido
- só queríamos que morresse, que parasse

só sabemos errar porque conhecemos mal as nossas mãos.

Não sabemos do corpo porque o escondemos dos olhos, não sabemos do céu porque o renegámos com a boca toda. Não sabemos do mar porque foi levado pelos homens
 mas também não sabemos de nós
- o que é que tu sabes de mim, afinal?



Não sabemos das flores que nascem dos olhos; não sabemos da gramagem do peso da roupa que trazemos quando, nus, nos apresentamos no centro da Terra para a recolha do mundo
- olha aqui, os ossos


Não sabemos das paredes e do tijolo porque conhecemos pelo nome as pestanas dos teus olhos; não sabemos da confusão porque começámos a respirar pelo mesmo corpo; o silêncio.
- o silêncio a crescer-nos nos braços e tu a ires por teres de ir


Não sabemos que os últimos são os primeiros, não sabemos contar sem ajuda dos fios do cabelo, nem com os dedos das mãos coladas
- há um fim para todas as coisas com nome mas nós não temos nome



Não sabemos se bordamos a boca a linha branca ou preta; não sabemos se depois da morte os corpos não deveriam manter os olhos abertos,  para nos verem, abertos, para sempre.










domingo, 7 de fevereiro de 2016

A terra vazia





Somos nós aqui de novo na minha cabeça. Tu e eu sentados na mesa e tu,
- queres ver os meus ossos?

Não sei onde tinha deixado os olhos antes da tua pergunta e tu,
-olha aqui

Tu, como se de um juramento se tratasse, pousaste a tua mão na mesa. E deixaste de ter rosto e corpo e eras apenas a tua mão a olhar para mim.
Tinhas dedos deformados como ramos de árvore
- queria dizer-te que os teus dedos eram árvores bonitas de tortas mas
( eu perdida  porque contigo parecia haver chão ou seria só eu e a minha cabeça cá dentro)


O tempo a durar pouco no relógio, todos à nossa volta congelados com comida na boca até tu ires para o sol e eu entrar no vento
(eu entrei no vento)

Eu. Eu a achar que se a algum de nós faltasse parte, era eu quem seguia desossada.


sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Carta 33





Já chega de escrever na boca.
Já chega de geografias e de medo.
Já chega de tempo e de mortos na estrada com corpos por apanhar.
Já chega de ti.

Já chega do norte e do sul na cabeça,
já chega do este e do oeste e do poente,
ou de ter-te engasgado debaixo da pele.
(já chega de não saber tirar-te daqui).

Já chega de saber que vives.



Já chega de rir ou de contar-te as cicatrizes,
já chega do soslaio, de barba e de ar por respirar
(já chega de sentir que não entra, que não sai)
Já chega da mão, do braço e do joelho,
 já chega de partes por tocar.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

41





Os olhos, o corpo a tombar pelo impacto,
e a tua vida toda.
O nariz, a boca na terra depois da queda, a sombra do queixo no peito,
e a tua vida toda.

As cicatrizes na testa, o desenho do cabelo, a barba que cresce pela medida o tempo,
e a tua vida toda.

Os dedos tortos, os ossos das costas desfeitos pelo golpe.
A pele em desgraça,o músculo, os joelhos a viverem debaixo das calças,
e a tua vida toda.

O corpo, a força que vem dos braços e do tronco, e da raiz que são as pernas,
e a tua vida toda.

A contagem do tempo que levas para pensar - uma noite
ausente de sono - e a tua vida toda.
Os outros dois olhos pequenos a quem deste vida,
e a mesma vida toda.

O doce, o pó e os mortos que ainda agora acordam do sono,
e a tua vida toda.



Entrevista - Alentejo Calling - Rádio Renascença

  ler aqui:  https://rr.sapo.pt/noticia/pais/2024/09/24/migrantes-ajudam-a-construir-um-alentejo-absolutamente-novo-e-povoado/394895/