segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Cilício (I)





Há dias em que não sabemos sair de casa ou em que a casa não sabe sair de nós.
Estamos a comer uma tosta mista com carne e milho e pão alentejano na Ericeira. Há dias em que não consigo sair da cama.  Temos de beber dois ice teas para a tosta escorregar por dentro, para  conseguir passar  da boca até ao estômago.
Em dias destes as pernas saem-te da cama. As pernas fazem-te levantar e caminhar até à casa de banho quando essa era a tua última vontade. Costumava deixar restos de tosta nos dentes de trás para puder ficar com alguma coisa dessa tarde: havia tempo enquanto a massa do pão não se desprendesse da gengiva,o tempo da estrada da Ericeira até minha casa. E quando as tuas pernas te fazem voltar ao quarto, sentas-te novamente na cama, os teus braços vestem-te com o amor que precisas para despertar,

as tuas mãos lavam-te a cara,
e os teus dedos indicadores,  molhados de saliva, alinham-te as sobrancelhas frente ao espelho
como a tua ama fazia quando eras pequena e ela te lavava; para depois te mandar  levantar vestindo-te uma camisola interior branca num dia frio de Inverno.

As tuas mãos continuam o seu trabalho de mãe e apertam os atacadores da roupa dos teus pés.
A tosta vai na tua boca dentro do carro e vais aguentar o pão nos dentes tempo suficiente para não chorar. As mãos apertam com um elástico o teu cabelo sujo e abrem a torneira da água quente. E esfregam-te, esfregam-te tanto.
Esfregam-te porque desde que o carro saiu não restou mais nada. As tuas mãos não têm pena de ti. Gostam de ti e do teu corpo. Cuidam. É que há o teu corpo. E as tuas mãos pegam na toalha e secam-te as pernas, os pés, seios magros sem maternidade e limpam-te os olhos.
E só assim tu percebes que não estás só: porque te tens e porque é teu o teu corpo.


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