Recebi hoje a mensagem de que morreu.
Com a idade aprendemos a receber estas notícias a precisar de um sofá para nos sentarmos.
Um sofá para sentar o corpo, para ver o que vai cair à volta como se soubéssemos que esta é a hora em que tudo colapsa e não vale a pena chamar o 112 porque é cá dentro. Como se assistíssemos a tudo a desmoronar enquanto respiramos devagar e usamos o tecto para controlar os olhos. Não choramos, não choramingamos: persistimos e prevalecemos como as bactérias.
Foi uma vida toda consigo, sabe? Lembro-me de do alto dos
meus 7 anos o desafiar na catequese de sábado à tarde e lhe perguntar:
-“ e se eu não souber perdoar, o que é que me acontece?”
O senhor Joaquim, do alto da sua sabedoria, a perceber que tinha ali
uma case-study de 7 anos de nariz empinado que fazia das suas aulas de
catequese uma mesa de ping-pong , a perceber que eu ia sofrer um bocadinho se continuasse
– como os dois sabemos que continuei - empertigada e questionadora, empertigada e sem medo; o senhor do alto da sua paciência a pensar “mas o que é que uma miúda
de 7 anos sabe? O que é que ela acha que sabe?” e eu a sair da sua catequese
com as minhas dúvidas e as minhas crises existenciais precoces e o catecismo na
mão.
Depois, no caminho da adolescência, das amizades e
desamizades, dos namorados e desnamorados:
- “oh Inês, tu és
terrível”
e dai um pulo até
saber que eu me tinha posto a escrever livros:
- “se tu não existisses tinhas de ser inventada”
Quando abandonei o nosso bairro eterno, o nosso bairro que
tinha a sua cara e a do Maurício, saber que perguntava por mim à minha mãe com
carinho e amor nos seus olhos claros.
Quando regressei, já a fazer documentários e coisas boas, o senhor Joaquim e os seus olhos a olharem para mim e a dizerem:
- “vi-te na televisão hoje a falar”
e eu a pensar que estou tão diferente do tempo dos escuteiros em que deixava cair lamparinas acesas durante as celebrações do Mês de Maria e era perdoada.
O senhor e o seu carro a buzinarem para o meu carro ou para
mim na rua, sem parar até à curva da igreja; eu a achar que tenho muita sorte
por ter gente boa a gostar assim de mim.
Sabe, soube que estava doente há dois meses. Não o fui
visitar porque a minha vida andava aos pinotes e fui, como sempre, deixando
para depois. Podia explicar-lhe que andei afogada em trabalho e tive de
albergar pessoas em minha casa e no meio disso tudo fazer coisas acontecer
(falei-lhe disso na última vez que nos vimos e
tinha de se despachar para ir, despedimo-nos tão rápido).
Mas e o resto?
Tenho pena que não houvesse tempo para lhe falar do D.
Ia gostar de o conhecer e ele certamente ia gostar muito de si.
Ia gostar de o conhecer e ele certamente ia gostar muito de si.
Amanhã assino o contrato do livro novo. A bomba atómica que
já lhe tinha falado, aquela que levou uns 4 anos da minha vida e de tantas
viagens e questões.
Disse que o nosso bairro ficou mais pobre com a morte do Maurício.
Hoje, com a sua morte, não faço ideia como vai ser.
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