domingo, 15 de dezembro de 2019

Do tempo em que as bocas caem para sempre







Recebi hoje a mensagem de que morreu. 

Com a idade aprendemos a receber estas notícias a precisar de um sofá para nos sentarmos.
Um sofá para sentar o corpo, para ver o que vai cair à volta como se soubéssemos que esta é a hora em que tudo colapsa e não vale a pena chamar o 112 porque é cá dentro. Como se assistíssemos a tudo a desmoronar enquanto respiramos devagar e usamos o tecto para controlar os olhos. Não choramos, não choramingamos: persistimos e prevalecemos como as bactérias.

Foi uma vida toda consigo, sabe? Lembro-me de do alto dos meus 7 anos o desafiar na catequese de sábado à tarde e lhe perguntar:

-“ e se eu não souber perdoar, o que é que me acontece?”

O senhor Joaquim, do alto da sua sabedoria, a perceber que tinha ali uma case-study de 7 anos de nariz empinado que fazia das suas aulas de catequese uma mesa de ping-pong , a perceber que eu ia sofrer um bocadinho se continuasse – como os dois sabemos que continuei - empertigada e questionadora, empertigada e sem medo; o senhor do alto da sua paciência a pensar “mas o que é que uma miúda de 7 anos sabe? O que é que ela acha que sabe?” e eu a sair da sua catequese com as minhas dúvidas e as minhas crises existenciais precoces e o catecismo na mão.

Depois, no caminho da adolescência, das amizades e desamizades, dos namorados e desnamorados:
-  “oh Inês, tu és terrível”

 e dai um pulo até saber que eu me tinha posto a escrever livros:
- “se tu não existisses tinhas de ser inventada”


Quando abandonei o nosso bairro eterno, o nosso bairro que tinha a sua cara e a do Maurício, saber que perguntava por mim à minha mãe com carinho e amor nos seus olhos claros.

Quando regressei, já a fazer documentários e coisas boas, o senhor Joaquim e os seus olhos a olharem para mim e a dizerem:

- “vi-te na televisão hoje a falar”

e eu a pensar que estou tão diferente do tempo dos escuteiros em que deixava cair lamparinas acesas durante as celebrações do Mês de Maria e era perdoada.

O senhor e o seu carro a buzinarem para o meu carro ou para mim na rua, sem parar até à curva da igreja; eu a achar que tenho muita sorte por ter gente boa a gostar assim de mim.

Sabe, soube que estava doente há dois meses. Não o fui visitar porque a minha vida andava aos pinotes e fui, como sempre, deixando para depois. Podia explicar-lhe que andei afogada em trabalho e tive de albergar pessoas em minha casa e no meio disso tudo fazer coisas acontecer (falei-lhe disso na última vez que nos vimos e  tinha de se despachar para ir, despedimo-nos tão rápido).

 Mas e o resto?

Tenho pena que não houvesse tempo para lhe falar do D.
Ia gostar de o conhecer e ele certamente ia gostar muito de si.


Amanhã assino o contrato do livro novo. A bomba atómica que já lhe tinha falado, aquela que levou uns 4 anos da minha vida e de tantas viagens e questões.

Disse que o nosso bairro ficou mais pobre com a morte do Maurício.
Hoje, com a sua morte, não faço ideia como vai ser.



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Entrevista - Alentejo Calling - Rádio Renascença

  ler aqui:  https://rr.sapo.pt/noticia/pais/2024/09/24/migrantes-ajudam-a-construir-um-alentejo-absolutamente-novo-e-povoado/394895/