quinta-feira, 3 de março de 2016

Da vida do abismo





Querida Avó,





Não voltas, avó. Algo me diz que não voltas à minha cama.

Ou talvez voltes - um dia numa emergência - mas devo preparar-me para não te ter mais por perto; talvez por me  ter tornado tudo aquilo que esperavas de mim este tempo todo.Não há erros a lamentar, pois não, avó? Não existem, de facto. Erros são momentos de tragicidade que deviam ter sido os melhores de todos: só por isso trazem consigo tamanha dor, tamanho sentido de engano.

Há por isso caminho, avó, caminho.  Tenho saltos a dar e preciso viver a atracção imensa que o abismo exerce sobre mim: talvez porque eu também seja parte desse abismo, desse buraco imenso lá em baixo a ver-me.


Sei que não tenho mais casaco com capuz, nem botas ortopédicas nos pés, nem a mãe me arranjou mais o cabelo. 
O tempo soube substituir essa menina contigo na escada – sempre tão cheia de energia, sempre com tanta vontade de saltar que tu tentavas controlar - por uma mulher de saltos altos a sentir o chão como parte do seu corpo: do seu corpo.

Do meu corpo, avó, a gigantesca continuação dos meus braços, das minhas pernas, dos meus pés, ainda que feitos de terra batida, de terra seca. A terra de um imenso, negro e intenso abismo.








2 comentários:

  1. Palavras sentidas pela pena brilhante de uma grande escritora portuguesa já com créditos firmados - Inês Leitão.

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Entrevista - Alentejo Calling - Rádio Renascença

  ler aqui:  https://rr.sapo.pt/noticia/pais/2024/09/24/migrantes-ajudam-a-construir-um-alentejo-absolutamente-novo-e-povoado/394895/