sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Eu e Elas



No dia em que me falaram de Cadi e Salumé eu era uma mulher envolvida em dez projetos ao mesmo tempo. 
A frase mais comum que podiam ouvir da minha boca era “não tenho tempo, mas deixa-me ver como fazemos”. De facto, não tinha tempo, arranjava-o.

 Entre projectos e documentários, entre formações e associativismos eu era uma máquina humana de trabalho.

Quando a V. me falou do caso de uma menina guineense com hidrocefalia que era urgente trazer para Portugal para tratamentos médicos, e que por essa razão procurava uma família de SOS -  uma menina e uma mãe que tinham bilhete comprado mas que haviam ficado sem família de acolhimento portuguesa em Lisboa à ultima hora-  eu disse a V.:
- “Eu  tenho um quarto a mais”.

Eu não tinha tempo, de facto, mas tinha não um mas dois quartos a mais em casa por usar: um deles fechado, o outro com sapatos e malas e desarrumação.

Lembro-me que na véspera da chegada das duas, nesta altura da minha vida, eu sabia bem o que era não ter lugar, não ter sitio, não ter casa em virtude de uma calamidade ou de uma desgraça. Quem tem casa tem um lugar, tem proteção, tem para onde ir.
Quem não tem casa não tem nada.

Havia chegado de umas filmagens em Moçambique, na região da Beira. A questão da devastação do ciclone Idai ainda me deixava dormir mal. Talvez por ver meninas e mulheres vulneráveis em situação de pobreza e fome e estivesse ainda demasiado fresco na minha memória a questão do desalojamento, do reassentamento, de não ter casa.

A minha resposta não podia ser outra se não a “venham que eu tenho uma casa”.
Ter casa tornara-se para mim uma referência do que somos e do que podemos. Eu tinha espaço a mais na minha, elas precisavam de uma. Para mim a lógica matemática foi fácil.
A partir do momento que aceitei estas duas pessoas a curto médio, apoiando-as na Estefânia por um internamento urgente, tudo mudou. Comecei a alterar o quarto vazio que tinha e a preenchê-lo com o que mais se podia aproximar de sinónimos de conforto e segurança. Não tinha fundo de maneio para grandes obras e comecei a limpar a arrumar tudo para aquilo que seria uma situação pontual, curta e em SOS.
Arranjei por empréstimo uma cama, por outro empréstimo uma cómoda e um espelho. Começaram a chegar apoios de fraldas, de roupas e papas. Vi passar pela porta da minha casa uma das minhas grandes amigas com carro de bebé ultramoderno, cadeirinha e tudo o que era necessário para a mobilidade e para a segurança de um bebé que chegava.

Num piscar de olhos a minha sala que nunca pareceu atravancada, era agora espaço para um parque, um aquecedor, mantas e mantinhas, milhares de brinquedos, sacos e fraldas que comprara do tamanho errado.

Cometi vários erros neste processo das aquisições e sobretudo com tamanhos.

Comprei roupa demasiado pequena ou demasiado grande, toalhitas que não se podiam usar num rabo de um bebé vindo da Guiné e pouco adepto do álcool, comida embalada para aquecer no microondas e absolutamente desadequada para uma criança subnutrida. Precisava de uma trituradora para carne. 

Precisava conhecer a verdadeira importância do peixe. Precisava de um microondas novo. Precisava saber coisas que nunca imaginei ser possível vir a dominar.

Tentei tirar manchas o chão com lixívia e à força de braços, mas como não consegui e as manchas aumentaram, resolvi o meu problema estético com um tapete por cima.  Resolvido. 

Durante dias passei por aquele quarto como quem passa por uma masterpiece que precisa de uso mas que está ali.

Olhava para a minha obra – este quarto a nascer - como quem tinha dado o seu melhor, mas no mais profundo do meu ser, sempre considerei  que neste caso o meu melhor não seria o suficiente. Conhecendo África como conheci, imaginei muitas vezes no que Cadi pudesse ter passado com a sua bebé iran na capulana.

Salumé é um bebé iran. São crianças que muitas vezes nascem com atrasos, paralisias, no fundo somente doentes. Crianças doentes a quem o feiticeiro acusa de trazer maldição para a família e que por isso, estigmatizada, deve ser abandonada para morrer no rio ou no mato.

Tinha escrito um livro para crianças sobre um menino iran antes da Salumé entrar na minha vida, mas a verdade era só um livro. A dimensão de tudo o que chegou a mim com elas ultrapassava a minha cabeça e a ficção que ela produz.

Tive a preocupação de não ter carne de porco por perto, arranjei um espaço no outro quarto, com um tapete, para que a mãe Cadi pudesse rezar para Meca com conforto e serenidade que eu preciso para rezar.

Porque nunca fui a Meca e não sabia em que direção ficava, nasceu entre mim e aquele tapete no outro quarto um problema. Como colocar o tapete virado para Meca?

 Se para mim a espiritualidade era um escape configurado no meu ADN, acreditava que, para o que esta mulher passou, também pudesse ser. Acertar a posição certa do tapete foi um mito lá em casa.

Fui à internet procurar. Olhei para aquele tapete dias a fio a tentar perceber como o colocar sem a ofender quando chegasse. Se um dia de manhã o virava para Este, no outro dia coloca-lo-ia para Oeste.

Outro problema que tentei resolver chamava-se Ophelia Leitão, a minha pug que constantemente em mudança de pelo me conseguia fazer sentir uma empregada de limpeza de cabeleireiro.

Ophelia, a minha cadela gorda, teve de imigrar para a casa da minha mãe para a  chegada de mãe e filha. Tive medo que não gostassem de cães e cedi. Como vim a ceder em tantas coisas, naqueles primeiros dez dias.

Salumé berrava zangada com a instituição do banho e de comida nutritiva que não continha mais batatas fritas.
Olhei para ela e disse-lhe:
- “Batatas fritas no way”.


Ela olhou para a mãe e disse qualquer coisa em crioulo que não percebi  para começar a chorar.

No sexto dia, quando lhe tentava dar banho, aos gritos, Salumé agarrou-me a mão e mordeu-me com todos os seus dentes pequeninos.

A dor acutilante da dentada centrou os meus olhos nos dela, e por alguns  nanossegundos, acho que nos medimos.

Quando olhei para ela na banheira que tinha sido minha, com os seus olhos enormes numa berraria, percebi que estava ali a nascer um problema.
Quando achou que devia largar os seus dentes do meu dedo, voltei a colocá-lo perto da sua boca para a desafiar.

-“Morde-me outra vez”.
Ela deixou de chorar. 

Olhou para mim como se tivesse percebido e desviou a minha mão com os seus bracinhos pequenos.
Tirei-a da água e enrolei-a na toalha para a limpar, com a mãe ao lado.

- “Ótimo, assim ficamos entendidas. Gosto de ti”, respondi.




Do regresso

  porque eu já não sei escrever. -as minhas unhas, os meus dedos, a minha boca já não sabem escrever.   já não sei escrever. -os meus olhos,...