Há muito tempo que este medo não chegava assim: eu antes só tinha medo quando era domingo depois de sábado, e tu sabias quando era domingo depois de um sábado.
Tu sabias.
Tu sabias e fazias-nos deitar mais cedo para eu não me sentir assim, para eu não sentir isto e para o domingo ser pequeno e eu não o ver muito: sim, eu não o podia ver muito.
Despias-me.
Deitavas-me na cama.
Encostavas a porta do nosso quarto e fechavas a luz.
Eu deixava-me despir por ti, deixava-me deitar, deixava que encostasses a porta do nosso quarto e que fechasses a luz para não ser domingo: a verdade é que tu sempre soubeste o que fazer por mim quando eu não soube
Eu não queria sentir e tu dizias:
- fecha os olhos um bocadinho
Eu fechava os nossos olhos um bocadinho porque o lugar onde eu acabava para tu começares a existir era uma linha a giz que bastava soprar - e não fazia mal, desde que o giz não desaparecesse, que não desaparecesses.
Eu fazia binóculos a fingir com as mãos e olhava para o tecto a saber que tu virias da sala: nós tínhamos o velho hábito de ser felizes até deixarmos de ser.
As minhas mãos eram binóculos e tu fazias o dia ser noite, fazias o domingo não ser domingo. Mas morreste. E os mortos não me sabem despir, não me sabem deitar, não sabem encostar a porta do nosso quarto nem fechar a luz.
Não, os mortos não sabem nada disso.
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