sábado, 19 de fevereiro de 2011

Notificação de óbito

Começou por uma notificação de óbito, avó. Uma notificação de óbito escrita num livro que ando a ler da Marguerite Duras. Não sabes quem é, avó. Não tiveste oportunidade de ir à escola, de ler os franceses, mas não fiques triste porque não faz mal: eu fui à escola por ti e gosto da Srª Duras.
Foi a ler o livro dela que comecei a
-ouço nas têmporas um latejar que aumenta

e imediatamente os meus olhos se fixaram na tua fotografia estática no desktop do meu portátil
- ouço nas têmporas um latejar que



Óbito.
Tu morreste quando as paredes da sala da nossa casa eram verdes escuras, numa tentativa realista da mãe fazer da nossa casa uma casa moderna dos anos 80
- ouço nas têmpora um latejar



eu não estou na tua fotografia mas pertenço ali.


Porque pertenço a ti, às paredes, à mãe. Há uma pele de raposa no sofá. Há um sofá. Queria ter-te conhecido melhor. Queria saber até que ponto é que a beleza de uma mulher surda pode fascinar homens de uma aldeia inteira. Queria saber coisas de ti que a mãe não conta e poder pensar em ti sem que uma das palavras-chave do motor de busca do meu cérebro fosse óbito. Penso em óbito e és tu e a noção que tenho de ti que me invade. Notificação de óbito. Tu. Óbito. Tu.Óbito. Tu. Tu. Tu.

Vou voltar ao livro da Marguerite porque me sinto mais sozinha quando te vejo nessa sala. Não sei por que razão te pus tão perto das minhas mãos. As paredes da sala verde, tu a olhares para a máquina fotográfica como se não soubesses o que ela ia fazer contigo. Notificação de óbito. A nossa casa. Tu a veres a lente sem imaginares que te íamos ter assim para sempre depois de. Da notificação.


“ (…) Tocam. Quem é?- uma assistente social da câmara. O latejar das têmporas continua. Eu devia acabar com este latejar nas têmporas – parar o coração - acalmá-lo - mas nunca se acalmará sozinho, é preciso ajudá-lo. Parar a exorbitância da razão que foge, que abandona a cabeça. Visto o casaco, desço. Lá está a porteira: Bom dia Sr.ª L. Não tinha ar nenhum de especial, hoje. A rua também não. Lá fora, Abril. (…)”


Marguerite Duras, A Dor, Ed. Difel

1 comentário:

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