quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Plantar palavras na boca

 





Não sobrou nada aqui, avó.
Não há sequer a madeira encarquilhada da tua casa, a oliveira dentro da sala, o meu baloiço-pneu que me erguia aos céus se esticasse bem as pernas, se esticasse com força, como os grandes, e como os grandes não te vi nas ruas de Mangualde: tu, uma mulher de lenço preto, surda e de olhos cinzentos de idade.

É que morreram todos, avó: as primas, o chapeleiro, o padeiro, a Mariazinha e sua filha e a tua rua é agora parqueada, como se tivessemos que pagar para existir dentro daquilo que é nosso, dentro daquilo que trazemos cá dentro.

É que nem sobrámos nós, avó. Não fomos as mesmas a voltar para uma Lisboa gigante que nos conforta no anonimato. Porque nós não nos achámos lá.
Eu não estava no teu quintal a ver as galinhas picarem-me as pernas sem que me desviasse, sem que soubesse que existem dores que não precisamos padecer, e que com quatro anos, ainda não temos de sofrer pela remissão dos nossos pecados. 




Eu padecia até que alguém chegasse.


A mãe está parecida contigo.
E eu não encontrei ninguém que pudesse ser eu.

domingo, 19 de agosto de 2012

Dos ossos gastos


                                                                                     Casteleiro, 18 de Agosto de 1893




Para a S. com todo o meu amor



O corpo é uma lonjura.
Podias bater-me vezes sem conta porque o meu corpo já não sente: é longe e já não dói.

A bofetada não faz mais o rosto inchar o inconveniente vermelho, nem os pontapés nas costas são mais sofrimento.

As marcas das pancadas deixaram de causar dor ou aflição. Tornaram-se apenas nódoas de luto, como se os vasos sanguíneos debaixo da parte da pele  atacada quisessem erguer um luto corpóreo,
um luto imediato que se substitui à necessidade do uso de uma peça de roupa preta
(a minha pele em luto assume uma negritude cerimonial à laia de lenço na cabeça, de saia ou de camisa de botões de punho)


e não haverá na minha cabeça tormento maior do que a ausência dessa dor fisíca que se embala, essa dor que nos ultrapassa; a majestade da dor, a sua enormidade dentro de nós já que sem ela nunca chegará o desgaste nem o fim.

E este meu amor por ti, este meu imenso amor por ti, será sempiterno.



Entrevista - Alentejo Calling - Rádio Renascença

  ler aqui:  https://rr.sapo.pt/noticia/pais/2024/09/24/migrantes-ajudam-a-construir-um-alentejo-absolutamente-novo-e-povoado/394895/