Querida filha que não tenho,
Texto publicado em Capazes
Se algum dia nasceres, não sei como fui capaz de te ter tido.
Devo ter sido assaltada pela coragem que atinge as mulheres da nossa família quando decidem ser mães: ter-te posto neste mundo será sempre como viver com um revólver apontado à minha própria cabeça.
Vou ter medo do que te possa acontecer sempre que saíres do meu radar de supervisão materna (dizem que isso é ser mãe).
Devo ter sido assaltada pela coragem que atinge as mulheres da nossa família quando decidem ser mães: ter-te posto neste mundo será sempre como viver com um revólver apontado à minha própria cabeça.
Vou ter medo do que te possa acontecer sempre que saíres do meu radar de supervisão materna (dizem que isso é ser mãe).
És uma mulher: a tua condição condena-te à nascença, se eu não te fizer forte, destemida e audaciosa. Vais estar duplamente priorizada na minha vida pelo género que te foi atribuído.
Mas vou educar-te para a guerra.
A tua geração certamente ainda não verá o que a minha geração sonha: mulheres respeitadas na rua quando passam para ir trabalhar, mulheres com acesso à educação e à saúde, mulheres com salário idêntico ao dos homens quando posicionados nas mesmas tarefas, mulheres que não precisam temer namorados com facas à sua espera.
Sei que enquanto viveres vais conhecer casos de mulheres vítimas de violência doméstica – de caras negras a explicarem que afinal caíram de uma escada enquanto choram medo – crianças em casamentos forçados, mulheres vítimas de tráfico sexual, de violação – talvez os teus ouvidos ainda oiçam juízes e juízas a dizerem de forma insinuosa “vestia-se de forma provocadora” , uma espécie de “estavas mesmo a pedi-las com essa saia e com esse decote”.
Não, minha querida, nenhuma mulher no mundo pediria para ser violada no seu juízo perfeito.
Sei que enquanto viveres vais conhecer casos de mulheres vítimas de violência doméstica – de caras negras a explicarem que afinal caíram de uma escada enquanto choram medo – crianças em casamentos forçados, mulheres vítimas de tráfico sexual, de violação – talvez os teus ouvidos ainda oiçam juízes e juízas a dizerem de forma insinuosa “vestia-se de forma provocadora” , uma espécie de “estavas mesmo a pedi-las com essa saia e com esse decote”.
Não, minha querida, nenhuma mulher no mundo pediria para ser violada no seu juízo perfeito.
Vais certamente ainda ouvir falar de casos de mulheres submetidas a tortura psicológica de matriarcas que passam a mandar nelas depois de um casamento que nunca escolheram para si: porque nunca foram ouvidas, porque nunca a sua voz importou.
A tua geração ainda vai saber o que é MGF: sobre como se faz mutilação genital feminina em bebés e em meninas – sim, põe-lhes um pano na boca se forem já meninas, sim cortam-nas para as controlar sexualmente, sim vão alegar que é tudo em nome de uma cultura ancestral.
Sei que vais saber que cultura e tradição não podem bombardear direitos humanos inalienáveis.
Sei que vais saber que cultura e tradição não podem bombardear direitos humanos inalienáveis.
Há dias liguei a televisão e ouvi um homem dizer que as leis deste país são “como as meninas virgens, foram feitas para ser violadas”.
Fiquei com a chávena na mão enquanto o ouvia e imediatamente pensei em ti.
Leviano e grotesco: “como meninas virgens para serem violadas”.
Leviano e grotesco: “como meninas virgens para serem violadas”.
Vivemos um tempo estranho.
Se algum dia nasceres, promete-me que olharás bem por ti… e pelas mulheres à tua volta.
Até um dia,
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