Acordei às 04:37 da manhã com a certeza de que ele estava morto.
Houve uma necessidade evidente do meu corpo se levantar da cama para as minhas mãos dizerem que ele morreu,
como se a concretização da realidade da escrita fosse mais séria, mais segura e até mais real do que um funeral solene que se execute sobre o seu corpo em repouso.
E não foi difícil voltar aqui, mãe.
São 4 horas da tarde e estamos no cemitério de Benfica outra vez. É domingo e eu sei que é domingo pela forma como me penteaste e me encheste de àgua-de-colónia depois de me dares banho. Partiste um galho da árvore ao lado da campa da avó desde o dia em que ela foi sepultada: o primeiro domingo de todos estes que temos vindo a cumprir.
Agora que chegámos, vou ocupar o meu lugar assim que tu colocares a tua mala naquele galho seco que a vai prender e proteger da sujidade da terra
- és bonita, mãe, és tão bonita aos domingos quando estamos aqui as duas
vais buscar água num balde, comum, partilhado por todos os que aqui têm mortos. Vais tirar a tua pequena vassoura do saco e vais começar a esfregar a campa da avó até o mármore atingir a cor que pretendes. Tem de ficar muito branco. A campa da avó é branca e suja-se rapidamente. Se viessemos cá a meio da semana terias o mesmo trabalho, dizias. São os pássaros e os seus excrementos ácidos que te irritam
(ou é por estarmos aqui porque a avó morreu, não sei)
eu não tenho nada para fazer a não ser ver-te da campa do lado onde me sentei com cuidado para não sujar o vestido.
É domingo. Fomos à missa, almoçámos, apanhámos o autocarro na estação de Benfica e chegámos aqui. Compraste cameleiras porque duram mais e a campa da avó tem de ficar mais bonita do que as outras: nunca foi uma exigência, é uma necessidade. Gostas da tua mãe depois de morta e tens saudades dela. Acho que queres que as pessoas que passam aqui descubram isso pelo estado em que deixas tudo.
Vou olhando para ti a limpar, às vezes pedes-me ajuda com o balde de água e quando chego com o vestido molhado oiço-te rezar e falar com ela como se ela não estivesse por debaixo deste mármore todo, como se estivesse por cima, aqui, sentada ao teu lado vestida de preto com o mesmo lenço na cabeça das fotografias.
Quando começas a falar com ela tens necessidade de limpar os olhos por mim. Eu sei e tu sabes que eu sei. Vou-me levantado e agarro em duas ou três pedras pequeninas: alguma coisa me diz que devo sair dali para te deixar chorar à vontade. Vão passar-se anos assim mas hoje tenho 6 e sou uma menina inteligente. Alguma coisa me diz que devo sair dali, deixar-te com a tua mãe para ir visitar os vizinhos da avó que vou conhecendo pelas fotografias no mármore deles e por aquilo que deixaram escrito na pedra para lermos. Sei ler. Estes são os vizinhos dela e agora é aqui que ela está.
Daqui a uns quinze minutos vais levantar o pescoço para me procurares e vais chamar-me baixinho.Vou ouvir sem precisares repetir o meu nome. Sei que está na hora, que terminaste e que regressaremos no outro domingo porque há um ritual de vida a cumprir:o nosso, a nossa continuidade.
Estou acordada na minha cama. São 04:37 da manhã e levanto-me para vomitar tudo o que comi ontem.
Amanhã vou a Benfica.
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Entrevista - Alentejo Calling - Rádio Renascença
ler aqui: https://rr.sapo.pt/noticia/pais/2024/09/24/migrantes-ajudam-a-construir-um-alentejo-absolutamente-novo-e-povoado/394895/
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INÊS LEITÃO nasceu a 1 de Julho de 1981 em Lisboa. É licenciada em Estudos Anglo- Americanos pela Faculdade de Letras da Univer...
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porque eu já não sei escrever. -as minhas unhas, os meus dedos, a minha boca já não sabem escrever. já não sei escrever. -os meus olhos,...
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