quinta-feira, 31 de março de 2016

Kit de sobrevivência




Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.Nunca mais.

terça-feira, 29 de março de 2016

Do resto do mundo





 Maputo, 5 de julho de 1889




Somos mais limpas, avó.
O nosso clã é mais limpo e mais polido do que tantos que vejo. Quando não tinhas dinheiro para nos deixar, deixaste-nos o maior legado de todos: berço.
Deixaste-me berço, savoir-faire, tacto e algumas matas que um dia destes havemos de por a produzir por ti.
Não sabias ler nem escrever mas a tua presença era iluminadora. 
Que um dia eu possa ser um terço do que foste, sem teres lido um único livro em toda a tua vida


Agradeço-te por tudo.
Sobretudo por não me teres feito pequena, fraca e suja.

domingo, 27 de março de 2016

Do esquecimento





Esqueci-me de te dizer que a minha cara me escorreu sem querer pelo espelho enquanto lavava os dentes de manhã
(juro que esfreguei bem: agora esfrego bem os dentes, esfrego durante muito mais tempo)



Escorreu-me pelo espelho da casa de banho e eu não fui a tempo de limpar tudo para ficar tudo limpo e  para deixar tudo como estava.

Eu queria ter deixado tudo como estava mas eu já não sei exactamente onde ficavam a minha boca no espelho, onde era o meu nariz, onde podia colar os meus olhos com as minhas pestanas lá dentro; não sabia o que fazer ao drama da testa caída da cabeça, das sobrancelhas e do queixo que tinha na mão, depois de apanhar  tudo do chão
( o meu queixo diferente de todos os outros queixos da rua -  eu a querer ter queixos como os que vejo a andar nas caras da rua)
- onde é que eu?




mas a minha cara a escorrer pelo espelho e eu a limpar rápido com as mãos; a limpar rápido com as mãos e com papel higiénico, a limpar rápido com o que tinha: eu e a minha cara a limparmos rápido tudo do chão frio para não se saber.

Eu a ter de tocar-lhe, novamente, como se estivesse viva.






sexta-feira, 25 de março de 2016

Dos ossos do corpo






Não levamos os olhos no corpo, só dor.

Não levamos as pernas que fazem o corpo andar, nem os dedos que servem para escrever. Não levamos os dentes na boca, não levamos lábios nem maçãs do rosto: não levamos a pele sequer connosco
(não, vamos deixar a pele aqui)
- quando eu era pequena a minha mãe abria a palma da mão sobre o meu rosto para o tactear. A sua mão, longa de aberta, a fazer o trabalho dos seus olhos, como se de uma mulher cega se tratasse - e cega - precisasse conhecer um filho que era seu



Como nos quadros que mentem beleza
( a mãe nunca foi cega, sempre trazia os seus olhos grandes consigo para me ver)



Como nos quadros que mentem perfeição: a estrada acaba
(os olhos da minha mãe são duas coisas no seu corpo)



E eu, eu que não sei dizer flor, não sei dizer canto: eu que nunca soube dizer adeus
- a mão da minha mãe que me tacteava a cara tinha um cheiro. A mãe, cega, parecia saber onde ficavam os meus olhos, o meu nariz e a minha boca. Parecia conhecer todo o posicionamento estratégico do meu rosto 



Um dia desistimos de caminhar, desistimos dos sapatos, desistimos dos pés e deixamos tudo à porta.
- a mãe sabia o caminho das minhas sobrancelhas até ao fim, demorava-se nas sobrancelhas para a seguir, os olhos; para  a seguir as pestanas


Um dia fechamos a porta e deixamos de ter medo de comer pó: comemo-lo como se de carne se tratasse.
 A boca ganhar-lhe-á o sabor.





domingo, 20 de março de 2016

Hoje é Inverno



Querida S.,

Vi nas noticias que a tua mãe morreu.
 A morte é torpe e cheia de astúcia. Actua do lado direito quando olhamos para o esquerdo. Abre-nos a cabeça com um martelo quando achamos que seria uma facada na perna o que nos atingiria, ou que alguém simplesmente dispararia sem remorso na direcção do nosso ouvido; a consistência do crânio despencaria pelas paredes da sala em mil pedaços.

A morte: sempre efervescente, sempre cirúrgica, sempre ardilosa  como uma mulher magra de má que passa os dias atrás da cortina  da sala de estar a ouvir conversas de família.



Não sei o que acontecerá quando um dia chegar em que a tua perda possa ser a minha.
Devíamos poder trocar com a pessoa que Ela quer para si e escolher, dizendo-lhe
- Não, em vez dela, leva-me a mim

E ela aceitaria a troca sem falar. Aceitaria sobretudo porque é só um corpo que  deseja. Não nos quer pela nossa beleza ou pela nossa fealdade: quer corpos no seu exército. Nessa altura, se alarme houver antes da sua chegada, pedirei para ir no lugar daquela que me teve, porque nunca saberei sobreviver a esse poço de inexistência e de exéquia.

Imagino-te desamparada.
O desamparo não deve ter equivalente mais doloroso. O desamparo é o  deixar-se cair sem apoio nem sustento. É a desistência, a queda, o desânimo total.
E para mim, que só aprendi pelos livros, o desamparo, é um outro nome de morte.



sábado, 12 de março de 2016

Desabitação







Quase morremos tantas vezes,
quase chocámos contra um carro na passadeira,
quase atropelados - na estrada com pessoas à volta a ver  como  ficávamos bonitos de cara no asfalto sem sentidos
(quase não resistimos aos ferimentos na cabeça, nem às sequelas)



Quase desistimos,
quase rasgámos a folha,
quase o nosso corpo sem dar à costa depois de afogado.



Quase nos encontraram na morgue para nos vestirem,
quase nos descobriram enforcados num candeeiro de rua enquanto passavam,
 quase nos foi dada a extrema-unção.

(quase o infinito e sempre a quase-morte)



Quase nos desligaram a máquina no hospital,
quase dados como mortos.

Quase fomos nós quem lhes abriu a porta para o assalto em casa, 
e quase foi nossa a mão na arma pronta a disparar sobre a cara
- não viste a nossa cara de terror com os olhos fechados e a pistola a dizer-se na testa?


E um dia houve em que quase ficámos sem corpo.

E fomos nós;
nós, nós sozinhos de olhos fechados,
que um dia desejámos ouvir o som do disparo.

quinta-feira, 3 de março de 2016

Da vida do abismo





Querida Avó,





Não voltas, avó. Algo me diz que não voltas à minha cama.

Ou talvez voltes - um dia numa emergência - mas devo preparar-me para não te ter mais por perto; talvez por me  ter tornado tudo aquilo que esperavas de mim este tempo todo.Não há erros a lamentar, pois não, avó? Não existem, de facto. Erros são momentos de tragicidade que deviam ter sido os melhores de todos: só por isso trazem consigo tamanha dor, tamanho sentido de engano.

Há por isso caminho, avó, caminho.  Tenho saltos a dar e preciso viver a atracção imensa que o abismo exerce sobre mim: talvez porque eu também seja parte desse abismo, desse buraco imenso lá em baixo a ver-me.


Sei que não tenho mais casaco com capuz, nem botas ortopédicas nos pés, nem a mãe me arranjou mais o cabelo. 
O tempo soube substituir essa menina contigo na escada – sempre tão cheia de energia, sempre com tanta vontade de saltar que tu tentavas controlar - por uma mulher de saltos altos a sentir o chão como parte do seu corpo: do seu corpo.

Do meu corpo, avó, a gigantesca continuação dos meus braços, das minhas pernas, dos meus pés, ainda que feitos de terra batida, de terra seca. A terra de um imenso, negro e intenso abismo.








Carta Aberta a ti



O meu texto sobre mutilação genital feminina aqui.

Entrevista - Alentejo Calling - Rádio Renascença

  ler aqui:  https://rr.sapo.pt/noticia/pais/2024/09/24/migrantes-ajudam-a-construir-um-alentejo-absolutamente-novo-e-povoado/394895/