domingo, 28 de abril de 2013
6 de Maio de 1893
6 de Maio de 1893
Querido P.,
O amor é uma súbita dor no corpo, um incómodo no peito: tantas e tantas vezes o amor é um acrescento.
Crescem-nos mais rins,
mais fígados,
mais pulmões
mais braços e mais pernas; o coração ganha novos vasos sanguíneos e as artérias latejam para além da compreensão da ciência. A ciência acompanha o entendimento do amor até ao seu limite; mas apenas até aí.
E foi amor que eu vim buscar.
Ao contrário de mim, tu treinas o teu coração para bater lentamente, regrides para tua própria proteção e entras em ti até ao lugar onde ninguém te apanha. Lá permaneces: e és sempre bem sucedido.
Talvez nunca te deixes apanhar nesse sítio onde ficas sozinho com um coração que abraça uma batida lenta, quase morta, ou talvez chegue o dia em que aprendes a ouvi-lo bater, aprendendo a gostar do eco do seu som dentro do teu corpo.
Talvez um dia saibas como fazer para desabotoar a camisa e abrir o peito para eu ver; talvez um dia também possas dar-me linha e agulha para eu coser com carinho
coser com carinho e medo e tempo
-precisamos tanto de tempo para alinhavar, medir e costurar o ponto certo
e com linha e agulha talvez o teu coração deixe de ser uma dor.
Se eu cosesse não ficaria igual ao coração que tinhas antes de mim; talvez não ficasse perfeito mas seria novo: menos destruído, inteiro de pele onde não deve haver sangue.
Mas o teu coração vai baixando o ritmo cardíaco lentamente até a tua vida se tornar vã e pacifica
(tu controlas a tua vida vã e pacifica),
enquanto fechas os olhos e me ensinas o método certo, como fazes até ao ritmo ser sustentavelmente fraco.
Eu oiço. Oiço-te. A minha orelha cola ao teu peito porque é novo e eu não sei chegar aí.
Dentro de mim a vida nunca será pacifica.
E o meu coração nunca será vão.
sexta-feira, 19 de abril de 2013
Cortar os dedos
Não tenho medo suficiente de ti porque tenho medo de mim:
e o meu medo é adequado às minhas necessidades .
Tenho medo de mim. Tenho medo de escovar o meu cabelo até à morte, depois do desembaraço, depois da perfeição da textura, depois da lisura e depois de depois do brilho.
Eu aqui sentada em contagem regressiva escovei o cabelo frente ao espelho até à exaustão do corpo
(dos braços)
( da mão)
( dos dedos)
( das unhas)
e dos fios últimos que pendem da cabeça.
Tenho medo de mim. Tenho medo de escovar o meu cabelo até à morte, depois do desembaraço, depois da perfeição da textura, depois da lisura e depois de depois do brilho.
Eu aqui sentada em contagem regressiva escovei o cabelo frente ao espelho até à exaustão do corpo
(dos braços)
( da mão)
( dos dedos)
( das unhas)
e dos fios últimos que pendem da cabeça.
Eu a fechar os olhos, eu já sem cabelo porque o escovei até ao silêncio. Agora, fios e fios de cabelo a penderem como linhas magras de costura vindos da pele branca e limpa da cabeça.
Cortei o cabelo.
A aflição termina mas o resto do corpo sente falta do que
ficou no chão, do cabelo morto que já não é parte nem da cabeça, nem do corpo, nem do chão.
E toda a cabeça chora, chora sem cessar.
E toda a cabeça chora, chora sem cessar.
quarta-feira, 17 de abril de 2013
Ficaste comigo no meu corpo
*Para P. com todo o meu amor
Ficaste comigo no meu corpo,
debaixo dos meus olhos
na curva do ouvido a nascer para um rosto
entre a pele do queixo que leva ao colo e ao peito.
Ficaste comigo no meu corpo,
na linha plácida da virilha
entre os dedos da mão e os dedos dos pés,
no desdobramento de um cotovelo perdido que se amarra ao braço.
Ficaste comigo no meu corpo,
entre o Norte e o Sul
na linha do comboio,
- de Este a Oeste -
no lugar onde o pôr do sol acorda a noite
para o dia em que o mundo pára por um encontro.
terça-feira, 9 de abril de 2013
Gosto de ti até ao ponto onde as coisas secam e morrem
Gosto de ti até ao
ponto onde as coisas secam e morrem.
Eu sou uma mulher pequena sem ouvidos. Os ouvidos não
nasceram no dia em que eu nasci, fiquei à espera que surgissem como cogumelos,
de um lado e de outro, entre a bochecha e o crânio
e todos os dias me chego ao espelho para assistir ao seu nascimento: dia após dia,
dia após dia.
Todos os dias e nada na pele, nada
nenhum contorno de carne, nenhum relevo: tudo é pele e transtorno.
Dias e dias a olhar-me ao espelho com a esperança que um ouvido nascesse onde pertence, seguindo-se-lhe o outro de forma a que as bocas das pessoas que falam a olhar para mim comecem a fazer sentido na minha cabeça, deixando de ser apenas lábios com vida própria
e todos os dias me chego ao espelho para assistir ao seu nascimento: dia após dia,
dia após dia.
Todos os dias e nada na pele, nada
nenhum contorno de carne, nenhum relevo: tudo é pele e transtorno.
Dias e dias a olhar-me ao espelho com a esperança que um ouvido nascesse onde pertence, seguindo-se-lhe o outro de forma a que as bocas das pessoas que falam a olhar para mim comecem a fazer sentido na minha cabeça, deixando de ser apenas lábios com vida própria
(a abrir e a fechar)
- para cima e para baixo, para um lado e para o outro, na confusão da língua
O cabelo tapa a minha falta com a mesma legitimidade dos pêlos debaixo da roupa.
Não tendo ouvidos,
toco a boca,
o nariz
e os olhos
todos os dias com as mãos, com medo que eles se enterrem dentro da cara e eu os perca para sempre.
Gosto de ti até ao ponto onde as coisas secam e morrem.
- para cima e para baixo, para um lado e para o outro, na confusão da língua
O cabelo tapa a minha falta com a mesma legitimidade dos pêlos debaixo da roupa.
Não tendo ouvidos,
toco a boca,
o nariz
e os olhos
todos os dias com as mãos, com medo que eles se enterrem dentro da cara e eu os perca para sempre.
Gosto de ti até ao ponto onde as coisas secam e morrem.
quinta-feira, 4 de abril de 2013
Do medo do corpo (I)
Não sei como te contar que as minhas mãos tremem. A direita
mais do que a esquerda. A mão direita a abanar como se estivesse a tremer o
mundo, como se quisesse existir sem a coordenação de um pulso que a liga a um
braço,
a um cotovelo,
a um ombro:
a mim que moro na cabeça do meu corpo.
As minhas mãos a tremer e eu na minha cabeça sem conseguir agarrar um copo de água: consequência directa de pequenos terramotos que se executam dentro do corpo, todos eles com o epicentro num coração que pulsa sem abrigo e sem embargo.
a um cotovelo,
a um ombro:
a mim que moro na cabeça do meu corpo.
As minhas mãos a tremer e eu na minha cabeça sem conseguir agarrar um copo de água: consequência directa de pequenos terramotos que se executam dentro do corpo, todos eles com o epicentro num coração que pulsa sem abrigo e sem embargo.
Porque ontem nada me doía e tudo era abalo.
(Pic: Eric Lacombe)
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Entrevista - Alentejo Calling - Rádio Renascença
ler aqui: https://rr.sapo.pt/noticia/pais/2024/09/24/migrantes-ajudam-a-construir-um-alentejo-absolutamente-novo-e-povoado/394895/
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INÊS LEITÃO nasceu a 1 de Julho de 1981 em Lisboa. É licenciada em Estudos Anglo- Americanos pela Faculdade de Letras da Univer...
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ler aqui: https://rr.sapo.pt/noticia/pais/2024/09/24/migrantes-ajudam-a-construir-um-alentejo-absolutamente-novo-e-povoado/394895/
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porque eu já não sei escrever. -as minhas unhas, os meus dedos, a minha boca já não sabem escrever. já não sei escrever. -os meus olhos,...