terça-feira, 9 de abril de 2013

Gosto de ti até ao ponto onde as coisas secam e morrem







Gosto de ti até ao ponto onde as coisas secam e morrem.
Eu sou uma mulher pequena sem ouvidos. Os ouvidos não nasceram no dia em que eu nasci, fiquei à espera que surgissem como cogumelos, de um lado e de outro, entre a bochecha e o crânio
 e todos os dias me chego ao espelho para assistir ao seu nascimento: dia após dia,
dia após dia.

Todos os dias e nada na pele, nada
nenhum contorno de carne, nenhum relevo: tudo é pele e transtorno.

Dias e dias a olhar-me ao espelho com a esperança que um ouvido nascesse onde pertence, seguindo-se-lhe o outro de forma a que as bocas das pessoas que falam a olhar para mim comecem a fazer sentido na minha cabeça, deixando de ser apenas lábios com vida própria
(a abrir e a fechar)
- para cima e para baixo, para um lado e para o outro, na confusão da língua

O cabelo tapa a minha falta com a mesma legitimidade dos pêlos debaixo da roupa.

Não tendo ouvidos,
 toco a boca,
o nariz
e os olhos
todos os dias com as mãos, com medo que eles se enterrem dentro da cara e eu os perca para sempre.

Gosto de ti até ao ponto onde as coisas secam e morrem.

(pic: Eric Lacombe)

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Entrevista - Alentejo Calling - Rádio Renascença

  ler aqui:  https://rr.sapo.pt/noticia/pais/2024/09/24/migrantes-ajudam-a-construir-um-alentejo-absolutamente-novo-e-povoado/394895/