domingo, 20 de março de 2016

Hoje é Inverno



Querida S.,

Vi nas noticias que a tua mãe morreu.
 A morte é torpe e cheia de astúcia. Actua do lado direito quando olhamos para o esquerdo. Abre-nos a cabeça com um martelo quando achamos que seria uma facada na perna o que nos atingiria, ou que alguém simplesmente dispararia sem remorso na direcção do nosso ouvido; a consistência do crânio despencaria pelas paredes da sala em mil pedaços.

A morte: sempre efervescente, sempre cirúrgica, sempre ardilosa  como uma mulher magra de má que passa os dias atrás da cortina  da sala de estar a ouvir conversas de família.



Não sei o que acontecerá quando um dia chegar em que a tua perda possa ser a minha.
Devíamos poder trocar com a pessoa que Ela quer para si e escolher, dizendo-lhe
- Não, em vez dela, leva-me a mim

E ela aceitaria a troca sem falar. Aceitaria sobretudo porque é só um corpo que  deseja. Não nos quer pela nossa beleza ou pela nossa fealdade: quer corpos no seu exército. Nessa altura, se alarme houver antes da sua chegada, pedirei para ir no lugar daquela que me teve, porque nunca saberei sobreviver a esse poço de inexistência e de exéquia.

Imagino-te desamparada.
O desamparo não deve ter equivalente mais doloroso. O desamparo é o  deixar-se cair sem apoio nem sustento. É a desistência, a queda, o desânimo total.
E para mim, que só aprendi pelos livros, o desamparo, é um outro nome de morte.



2 comentários:

  1. Obrigado querida Inês, são As palavras certas mesmo...

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  2. Maravilhoso e forte texto... Só não queria trocar de lugar... porque pior do que perdemos a mãe, só a mãe perder um filho... E não quero nunca que a minha mãe saiba que dor antinatura é essa.......
    Força, querida Sónia

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