domingo, 7 de agosto de 2016

Naquele tempo






Não nos basta os olhos,
não nos basta a dor.

Não nos basta a morte a correr no corredor de casa durante um almoço de família: o corredor que vai até aos quartos de dormir e passa pela cozinha
- pouca gente sabe mas a morte é uma menina de 5 anos com o cabelo comprido e sapatos de verniz vermelhos





não nos basta um cão enforcado no 3º andar,
não basta a cabeça com tanta gente lá dentro e o medo que tenho de  um dia não poder escrever mais, sobretudo  depois do que está por vir
- se um dia não conseguir  escrever vou unir os dedos da mão em cima da tábua de cozinha e cortá-los, juntos, num só lance, com o cutelo da minha mãe


Não nos basta o nosso corpo, no espelho
e nós a vermo-nos
 como se o nosso corpo nu abraçado fosse uma acácia morna feita de dois troncos tranquilos que gostam de vento.


Não nos basta as janelas da casa que falam,
não nos bastam os estores.
Não nos basta a decisão a firmar de que somos duas àrvores que falam aos olhos dos outros
- se um dia deixar de saber escrever vou ser tão triste

Não nos basta os lábios secos do sol e da àgua do mar,
não nos basta a pele morena e o cheiro que a felicidade nos deixa no refego quente do queixo dentro da cara
- nesse dia sentar-me-ei nos jardins de Lisboa e sacudirei toda  a poesia que me possa restar de entre os dedos mudos das mãos.





La Combe

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