sexta-feira, 29 de junho de 2018

Meu querido M.



Querido M.,

Estamos a dois dias do meu aniversário. Estou feliz.

Ganhei coragem hoje, sabes?
Pela primeira vez fui à tua casa encontrar-me com a tua mulher e com a tua filha.

Não há restos de ti por lá:  não vi fotografias tuas e levava um escudo protetor no cérebro que me impediu de falar de ti.
Nenhuma de nós falou de ti mas tu eras a corda imaginária, uma espécie de cordão umbilical que nos ligava às três no teu sofá.

Não vi nada teu,  mas a impressão com que fiquei foi que tu estás colado às paredes da tua casa, e ao corpo da tua mulher e da tua filha.

Gigante como és, imagino que nunca as vás deixar.
Tu não eras daqui. Nunca foste.

No domingo, bebe um gin por mim, ai no Céu, sim?
Elas vêm dar-me o teu abraço à festa.




P.S.: Tenho muitas saudades tuas

quinta-feira, 28 de junho de 2018

Querida Avó



Querida Avó,



estou quase a fazer anos e há tanto tempo que não sonho contigo.

Gosto de celebrar a vida, como sabes, e preparo-me para o fazer com a diligência de uma formiga que trabalha. Reunir pessoas, fazer convites, dizer que gosto deles ao telefone, arranjar um bolo altamente calórico na Versalhes.

Tenho feito isso sempre - mas mais agora - depois da morte do M.

Ainda não consegui ultrapassar esse enorme buraco: não consigo ainda nem dizer o nome dele.

 Para que saibas mesmo, não consigo sequer abraçar a mulher ou a filha dele porque não quero chorar, não quero ser mariquinhas. Mas isso hoje não importa, não é?
  Isso hoje não importa porque eu acredito em Céu e em anjos e em lugares no Céu onde se bebe gin e se é feliz com anjas e anjos:  o M. deve estar a beber uma cerveja num bar no Céu, com aquela gargalhada boa dele que fazia ouvir-se de uma ponta à outra do nosso bairro e talvez espreite cá para baixo para nos ver.

A sua morte ainda me tolhe a fala: como se a minha garganta se engolisse a si própria.
- quando quero falar dele engulo-me sem saber como fazer para falar




Mas voltemos aos meus anos. Está quase.

Dei muitas provas de valentia este ano, avó. Corri campeonatos e ganhei tudo o que havia para ganhar.

Só posso pedir que o próximo ano seja igual ou melhor.

A mãe está cada vez mais parecida com a imagem que tenho de ti dos meus 5 anos;  eu com as socas dos sapos calçados para ir mostrá-los à madrinha e a espatifar-me pelas escadas.

A cabeça aberta, toda a gente a olhar para mim e eu com medo de ficar sem as socas novas.

Essa parecença todos os dias me sobressalta porque este ano aprendi que só há uma coisa que eu nunca aprenderei a perder: as pessoas que amo.

Nunca vou saber fazer isso, avó.

Descobri que isso é como andares com um punhal no peito para o resto da vida. Andas com o punhal no peito, mas vives.

Estou quase a fazer anos ,avó, continua a olhar por mim ai das nuvens , sff.


terça-feira, 26 de junho de 2018

Declaração de Guerra




Faltam 4 dias e eu gostava de falar contigo com a facilidade com que falo com as teclas do meu computador.

As palavras escritas sempre foram mais fáceis para mim, sabes? Porque sei que há perpetuação, que tudo continua depois. Sei que ficam depois de mim e depois de ti,  para que alguém um dia possa ouvir de nós: porque não houve tempo.
Não houve tempo.



Faltou-nos tempo e tempo no espaço: porque há espaço sem tempo, não concordas?
Eu sempre procurei os dois.

Queria ter-te dito que a Ginko Biloba é a minha árvore favorita porque sobreviveu a Hiroshima com a tenacidade de quem sabe que o seu lugar é a terra: a Ginko biloba a dar um estalo ao nuclear que não lhe afectou os ramos nem as folhas – tens uma perto da tua casa mas acho que não sabes.

Queria ter-te dito que a minha praia favorita é S. Julião porque foi ali que aprendi a liberdade, e o mar: foi ali que aprendi o quanto o mar me dá.

Queria-te ter dito que o mundo é um lugar extraordinário e que acima de qualquer outra coisa, gosto tanto de encostar o meu ouvido ao teu peito cheio de coisas lá dentro,

 só para ouvir o teu coração bater.



quinta-feira, 14 de junho de 2018

Se eu não escrever sobre ti hoje








Se eu não escrever sobre ti hoje,
os meus dedos vão cair à terra sem que nada nasça deles à laia de semente,
 e as minhas mãos avisaram-me que não vão aceitar outra pele;
outra pele que venha a nascer.



Se eu não escrever sobre ti agora, nem sobre os teus olhos,
nem sobre os fios que te fazem cabelo,
são as orelhas: as orelhas e logo depois o nariz a descolarem-se do meu corpo
como pessoas a cair de mim
(a minha cara a desaparecer porque a seguir o meu queixo)



Se eu não falar de ti aos outros, há uma agulha pronta
para me coser os lábios: para os bordar e fazer deles napron de sofá antigo
numa casa sozinha.


Se eu não falar de ti agora aos outros, a lua vai para Júpiter
e marte recuará a sua órbita.



Se eu não falar de ti,
se eu não te traduzir para grego, aramaico e latim,
tu nunca saberás de nada,
nada de tudo aquilo que mora aqui.

Algoritmo




Os meus ossos têm febre
mas eu prefiro coser a minha boca a dizer-te o que eles te queriam dizer ao ouvido
com eternidade: os meus ossos falam em eternidade
e em ti,
e e mim, à noite antes de irmos todos dormir o meu corpo.

(os meus ossos prometeram dessossar-se para te falarem de mim sem que eu soubesse: eles queriam dizer-te do amor,
mas eu cosi a boca, sabes? cosia-a para ela nunca mais se abrir )


Eles queriam falar de nós,
como se eu 
e o meu corpo não estivéssemos aqui,
aqui,
aqui sentados os dois a olhar para ti pelo vidro,
aqui, sem saber bem porquê, 

a desejar-te tanto.





Entrevista - Alentejo Calling - Rádio Renascença

  ler aqui:  https://rr.sapo.pt/noticia/pais/2024/09/24/migrantes-ajudam-a-construir-um-alentejo-absolutamente-novo-e-povoado/394895/