20 de janeiro de 1893
Querida avó,
a minha terapia és tu. Quando tudo é vazio, profundo e buraco negro. Quando tudo é medo.
Há tanto tempo que não te escrevia mas tenho o coração logo depois da pele e consigo senti-lo como se ele estivesse a preparar-se para me rasgar e sair.
Sabes avó, a última vez que olhei para mim não tinha nem mãos, nem pernas nem ombros.
Avó, eu tocava-me e eu não era eu porque eu não tinha nada, avó, não tinha corpo refletido.
A última vez que me vi ao espelho apalpava a minha cara e não tinha curva do rosto, sabes avó, não tinha bochechas, lábios: não tinha nem nariz nem olhos nem boca, apalpava-me desesperada na cara e não havia sobrancelhas, nariz. Eu tocava-me e nada, nada, avó.
Avó, a maturidade e a sabedoria do tempo afinal ainda não são suficientes para me ter feito como tu, ou como a bisa, que um dia procurou um médico pelo seu próprio pé quase a morrer.
Como é que se faz, avó, para deixar de ser isto por dentro quando tudo é fragilidade? Não sei.
Pensei que o poder de saber exatamente quem sou e para onde vou me dessem esse lugar no mundo, mas não.
E pensei que o amor me salvasse mas ele parece não conseguir fazer isso por mim.
Talvez não lhe caiba esse inside job. Talvez eu sempre tentasse que alguém em salvasse e me desse o que eu parecia não conseguir chegar aqui de dentro.
Aqui de dentro.
Não sei, avó.
Pensava que sabia mais disto do que sei.
Voltei a escrever.
Reparei agora.
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