Mueck
Não tens vindo aos meus sonhos. Tens estado desaparecida ou
ocupada. Ias mais a Campo de Ourique do que vens a Sintra, diga-se. Pensei que
aparecesses hoje depois do que aconteceu: costumas vir depois do lodo.
Imagino que aches que
não preciso ver-te mais ou sentir-te por perto, que ganhei a resistência que
desejavas que eu tivesse ganho e me tornei o que era expectável: mas depois de
amanhã é Natal e o Natal ainda és tu. Tu e eu e o cheiro da comida da mãe. Os
doces. Nós todos à mesa.
Ninguém diria que passaram 28 anos depois de tu teres.
Teres.
Lembro-me da escada de casa e lembro-me de me puxares, de não me deixares descer os degraus sozinha com medo que eu caísse lá para baixo
(eu e as minhas botas ortopédicas que toda a gente achava bonitas menos eu)
- tu com medo que eu caísse: eu sem medo de me aventurar nos degraus altos, sem medo da queda
Este ano não foi fácil, avó. Saltei algumas vezes. Muitas
delas de olhos fechados e todas sem medo: algumas vezes caí num chão firme e
fofo sem nenhum arranhão, outras esfolei-me toda de cima a baixo
- um dia explicas-me de onde é que me vem este lado demasiado destemido
- um dia explicas-me de onde é que me vem este lado demasiado destemido
Hoje não há por aqui ninguém que me puxe o casaco como tu para
eu não me atrever nos degraus mais altos: os que se tornaram os meus favoritos.
Mas não faz mal.
Não faz mal que ninguém me puxe: não faz mesmo mal.
Eu vou sempre ser das que saltam. E das que não vão a medo.
Eu vou sempre ser das que saltam. E das que não vão a medo.